“A China e Cuba
são nações que assassinaram todas as liberdades,
todos os direitos humanos, que
desumanizaram o homem
e o transformaram no anti-homem, na antipessoa.
A
história socialista é um gigantesco mural de sangue e excremento.”
NELSON
RODRIGUES
“Não há ninguém
mais bobo do que um esquerdista sincero. Ele não sabe nada.
Apenas aceita o que
meia dúzia de imbecis lhe dão para dizer.”
NELSON
RODRIGUES
Ilustrações:
PAULA
REGO
(1933
– 2022. Lisboa / Portugal)
Crítico
ferrenho da esquerda e dos comunistas, ele inventou o teatro moderno brasileiro
em 1943, com a peça “Vestido de Noiva”, considerada um marco. Idolatrado e
odiado, politicamente conservador, apoiou o regime militar. NELSON RODRIGUES
(1912 - 1980. Recife / Pernambuco) ganhou seu nome em homenagem ao almirante
inglês Lord Nelson, vencedor da batalha de Trafalgar, em 1805. Quinto filho de
uma família de catorze irmãos, ainda na infância se mudou para o
Rio de Janeiro. Um leitor voraz, amou o romance clássico “Crime e Castigo” (1866), do russo Fiódor
Dostoiévski, que leu, em folhetim, aos 13 anos. A escola ele largou em 1927.
Aprendeu tudo sozinho, como autodidata. Aos 14 anos, criou seu próprio jornal,
o “Alma Infantil”, com quatro páginas. Terminou por se transformar
em um dos dramaturgos brasileiros mais conhecidos do século XX. Também publicou
romances, crônicas e contos. Escritor aclamado, destacou-se também como
jornalista e cronista dos costumes. Autor de frases famosas e conhecido pelas
opiniões polêmicas, nem sempre foi bem compreendido pela sociedade da época em
que viveu. Escreveu 17 peças, centenas de contos e nove romances. Para o
cinema, foram 23 adaptações de sua obra. Além disso, trabalhou
nos grandes jornais do Rio de Janeiro e, fanático torcedor do
Fluminense, foi um dos maiores cronistas esportivos de todos os tempos.
Impressionava pela capacidade de criar
histórias sobre os fatos mais corriqueiros. Suas obras, de
modo geral, apresentam linguagem coloquial e gírias, o que dá um caráter mais
popular. Em sua crítica de costumes à sociedade carioca, é perceptível a
ironia, além de imagens grotescas, evidenciando um cotidiano de adultérios,
atitudes hipócritas e outras condutas ditas imorais. O autor preferiu como
espaço da ação o subúrbio do Rio de Janeiro, onde ocorrem histórias de amor,
sexo, crime e morte. Ele não se restringiu aos acontecimentos, pois também
realizava a análise psicológica de seus personagens e fazia críticas à classe abastada.
Tudo começou em 1927, aos 15 anos, trabalhando como repórter policial no “A
Manhã”, periódico do seu pai. Quando Mario Rodrigues perdeu o jornal para o
sócio, fundou “Crítica” e levou o filho para a redação. Após uma
reportagem sensacionalista na publicação, uma senhora ofendida, acusada de
adultério, desesperada, correu ao local do jornal para matar Mário. Só
encontrou o belo Roberto, seu filho. Matou-o. Com um tiro no abdômen. NELSON
RODRIGUES estava na redação na hora do crime. Roberto recebeu a moça e fechou a
porta da sala. Foi o tempo para ela sacar o revólver de dentro da bolsa e
atirar. Ele ficou três dias entre a vida e a morte. O assassinato marcou
profundamente a trajetória da família. Mário, inconformado por seu filho ter
sido morto em seu lugar, passou a exagerar na bebida e, em poucos meses morreu,
com 44 anos, de trombose cerebral.
Com a vitória
de Getúlio Vargas na Revolução de 30, “Crítica” foi fechado por ordens do
governo. Começou, assim, o período da fome. Até 1935, quando a situação começou
a melhorar, os Rodrigues experimentaram a miséria. O saldo do período foram as
duas tuberculoses do escritor, que chegou a ser internado, e a morte de Joffre,
aos 21 anos, também devido à tuberculose. Joffre era o seu irmão mais próximo,
ele dizia que era como se fossem gêmeos. Anos antes, em 1925, Irineu Marinho
fundou “O Globo”, porém, 21 dias depois morreu de
infarto na banheira. Roberto Marinho, com 21 anos, herdou o jornal e contratou NELSON
RODRIGUES em 1932, que chamava seu chefe, por trás, de “analfabeto”. Trabalhava
também em “O Tempo”. Era tão pobre que só tinha um terno, todo puído. Andava de
sapatos sem meias, porque não tinha meias, e usava a mesma camisa três ou
quatro dias. Em 1940, ele se casou com Elza Bretanha, escondidos da família
dela. Em 1941, escreveu sua primeira peça, “A Mulher sem Pecado”. Ninguém
queria encená-la. Carlos Drummond de Andrade, então chefe de gabinete do
ministro da Educação de Getúlio Vargas, disse, lacônico:
“Interessante. Muito interessante”. Em 1942, foi finalmente encenada com
direção de Rodolfo Meyer. No entanto, com sua segunda
peça, “Vestido de Noiva”, em 1943, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
é que veio a consagração como dramaturgo.
Dirigida pelo
polonês Ziembinski, surpreendeu tanto pela linguagem dos personagens trazida do
cotidiano da classe média carioca, quanto pela inovação cênica. A peça conta a
história de Alaíde, que está num hospital após um atropelamento e tem
lembranças de seu passado misturadas ao de uma prostituta do começo do século
XX. Os planos cênicos eram o da alucinação, o da memória e o da realidade. O
poeta Manuel Bandeira adorou “Vestido de Noiva”, escrevendo, em “A Manhã”:
“Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei
fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às
criaturas da minha imaginação. ‘Vestido de Noiva’, em outro meio, consagraria
um autor. Que será aqui?”. A peça foi um sucesso. Para ganhar uns
trocados a mais, NELSON RODRIGUES começou a escrever um folhetim, “Meu Destino
é Pecar”, sob o pseudônimo de Suzana Flag, para “O Jornal”. Teve êxito. Uma
curiosidade. Ele escrevia com apenas dois dedos, os indicadores. A essa altura,
teve sua peça “Álbum de Família” censurada em 1946, sob a alegação de que
preconizava o incesto e incitava ao crime. Em janeiro de 1948 a peça “Senhora
dos Afogados” foi interditada. De caso com Nonoca Bruno, mãe de Nicette, escreveu,
para ela, “Doroteia”, em 1949. Foi um fracasso. Voltou a trabalhar em
1951, no jornal “Última Hora”, de Samuel Wainer, onde estreou a coluna “A Vida
como Ela é”, um grande sucesso. A narrativa era forte, deliciosa e prendia a
atenção do leitor.
Ele pôs a
classe média no centro de suas histórias e não tratava o pobre como o “ser
perfeito” inventado pela esquerda. Pelo contrário, para o autor, homens de
todas as classes sociais têm comportamentos parecidos no que se refere a amor,
ciúme, violência. O dramaturgo e cronista não era populista e não procurava
agradar. Escreveu “A Vida como Ela é” até 1961. Trazem temáticas relacionadas
ao casamento, ao adultério e a outros temas morais. A série de contos, talvez a
mais famosa da sua carreira literária, virou minissérie de TV nos anos 1990.
Maitê Proença, Guilherme Fontes, Cláudia Abreu e José Mayer interpretavam as
cenas de traição, desejo e lascívia. Em 1953,
escreveu a tragédia “A Falecida”. Em 1954, o público vaia “Senhora dos
Afogados”. “Perdoa-me por me Traíres”, de 1957, teve o próprio autor como um
dos atores. “Os Sete Gatinhos”, de 1958, deu lucro. E ganhou elogios de Paulo
Mendes Campos, poeta e cronista: “Acho sua melhor peça e um dos trabalhos mais
belos, mais fortes e mais impressionantes do teatro mundial contemporâneo”. No
romance “Asfalto Selvagem” (1959) pôs amigos e inimigos como personagens.
“O Beijo no Asfalto”, de 1960, com Fernanda Montenegro, ficou sete meses em
cartaz. Em 1962, escreveu “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária”. Em 1966, mais uma vez uma de suas obras foi censurada: o
romance “O Casamento”.
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“vestido de noiva” em 1943 |
Em 1967, passou
a escrever crônicas de caráter memorialístico para o “Correio da Manhã” e, em
seguida, para “O Globo”. Fumando cigarros compulsivamente, se revelaria como um
conservador, ou nas palavras dele, um reacionário. Incompreendido, brigava com
a esquerda e arrumou mais um amor, Lúcia Cruz Lima, com quem teve uma menina
doente, Daniela, cega, surda e muda. Foi cruel e destruiu o relacionamento com a
amante. A partir de 1963, o cinema descobre NELSON RODRIGUES. “Bonitinha, mas
Ordinária”, de 1963, foi visto por 2 milhões de espectadores. “A Falecida”, de
1965, fracassou comercialmente. A peça “Toda Nudez
Será Castigada”, solicitada por Fernanda Montenegro, terminou recusada por ela
mesma. Nessa época, várias pessoas
foram beneficiadas pela generosidade do dramaturgo e, sobretudo, por sua amizade com militares de proa. Quando
Hélio Pellegrino e Zuenir Ventura foram presos pelo regime militar, ele conseguiu
a libertação de ambos. Seu filho Nelsinho, de esquerda, envolvido na luta
armada, que vivia na clandestinidade e praticava ações armadas com o grupo
MR-8, foi preso em 1972. Ao visitá-lo, o pai viu que ele estava machucado.
Então, passou o resto da década pedindo, em cartas e artigos, por uma anistia
ampla. Desde sempre, tinha se posicionado, de maneira pontual, contrário à
censura da imprensa e à prisão de personalidades do meio cultural. Para o
presidente João Figueiredo, escreveu, em junho de 1979, no “Última Hora”:
“Escuta aqui,
Figueiredo. Muitos presidentes realizaram obras maravilhosas, faraônicas.
Construíram estradas, acabaram com a inflação – o diabo. Mas nenhum deles teve
a chance que você tem. A bondade está acima das leis. A generosidade, a
clemência, a misericórdia são os mais belos sentimentos que um ser humano pode
ter. Deixe o petróleo pra lá. A inflação que se dane. Um país não pode viver
dividido. Você estendeu a mão. Como podem apertá-la os brasileiros que estão
detidos? Solte esses rapazes, Figueiredo. Meia-dúzia de obras gigantescas não
colocam um presidente na História. Você é o único brasileiro que tem essa
oportunidade na mão. Solte esses moços, Figueiredo. Por favor, Figueiredo,
solte meu filho.”
Nelsinho seria
libertado em 1979. Ao tratar de temas como amores proibidos e desejos sexuais,
ao mesmo tempo em que fazia sucesso, ele era alvo de protestos, censura e
críticas. A sua matéria-prima era o ser humano, soube como poucos apresentar um
texto sofisticado para massas. Com sua experiência como jornalista, tornava a
narrativa acessível, com uma linguagem popular e ao mesmo tempo culta, tratando
dos dramas cotidianos e desconstruindo clichês. Ele estimulava a polêmica e se
divertia com isso. Com uma capacidade de trabalho invejável, também fez
história na televisão brasileira. Participou de mesas-redondas; e conduziu “A
Cabra Vadia”, entre 1966 e 1967, quadro que fazia
parte do programa “Noite de Gala”, entrevistando famosos com a presença, no
estúdio, de uma cabra viva. Pioneiro na teledramaturgia
brasileira, escreveu, para a TV Rio, a telenovela “A Morta Sem Espelho” (1963).
Enquanto esteve vivo, acompanhou a adaptação de sua obra para o cinema e chegou
a colaborar com o roteiro de “A Dama do Lotação” (1978), de Neville D’Almeida; “Bonitinha,
mas Ordinária” (1981) e “Álbum de Família” (1981),
de Braz Chediak. Escreveu, também, os diálogos para dois filmes: “Somos Dois”
(1950), de Milton Rodrigues, e “Como Ganhar na Loteria sem Perder a Esportiva”
(1971), de J. B. Tanko. No final da vida, estava debilitado e sofria muito.
Depois de um aneurisma na aorta, foi operado três vezes. Morreu aos 68
anos, de trombose e insuficiência cardíaca respiratória. Deixou seis filhos: Jofre, Nelson, Maria Lucia, Paulo César, Sonia e
Daniela.
NELSON
RODRIGUES permanece insuperável. Um dramaturgo e cronista do primeiro time. Ele
morreu há mais de quatro décadas, mas sua obra continua viva no teatro, cinema
e na literatura.
FONTES
O
ANJO PORNOGRÁFICO (1992)
de
Ruy Castro
DOSSIÊ
RODRIGUES - a GENEALOGIA (1900-1934) (2023)
de
Caco Coelho
MEMÓRIAS:
a MENINA SEM ESTRELA (1992)
de
Nelson Rodrigues
NELSON
RODRIGUES POR ELE MESMO (2012)
de
Sonia Rodrigues
O
ÓBVIO ULULANTE – PRIMEIRAS CONFISSÕES (1968)
de
Nelson Rodrigues
TEATRO
da OBSESSÃO: NELSON RODRIGUES (2004)
de Sábato
Magaldi
OBRAS
de NELSON RODRIGUES
A
MULHER sem PECADO (1941)
peça
teatral
VESTIDO
de NOIVA (1943)
peça
teatral
MEU
DESTINO é PECAR (1944)
romance
ESCRAVAS
do AMOR (1944)
romance
MINHA
VIDA (1944)
romance
ÁLBUM
de FAMÍLIA (1946)
peça
teatral
ANJO
NEGRO (1947)
peça
teatral
SENHORA
dos AFOGADOS (1947)
peça
teatral
NÚPCIAS
de FOGO (1948)
romance
A
MULHER que AMOU DEMAIS (1949)
romance
DOROTEIA
(1949)
peça
teatral
VALSA
NÚMERO 6 (1951)
peça
teatral
A
FALECIDA (1953)
teatral
A
MENTIRA (1953)
romance
PERDOA-ME
POR me TRAÍRES (1957)
peça
teatral
VIÚVA,
PORÉM HONESTA (1957)
peça
teatral
Os
SETE GATINHOS (1958)
peça
teatral
BOCA
de OURO (1959)
peça
teatral
O
HOMEM PROIBIDO (1959)
romance
ASFALTO
SELVAGEM: ENGRAÇADINHA, seus PECADOS e SEUS AMORES
(1959)
romance
O
BEIJO no ASFALTO (1960)
peça
teatral
BONITINHA,
mas ORDINÁRIA (1962)
peça
teatral
TODA
NUDEZ SERÁ CASTIGADA (1965)
peça
teatral
O
CASAMENTO (1966)
romance
O
ÓBVIO ULULANTE: PRIMEIRAS CONFISSÕES (1968)
crônicas.
A
CABRA VADIA (1970)
crônicas
CEM
CONTOS ESCOLHIDOS: a VIDA COMO ELA é (1972)
contos
ANTI-NELSON
RODRIGUES (1974)
peça
teatral
ELAS
GOSTAM de APANHAR (1974)
contos
O
REACIONÁRIO: MEMÓRIAS e CONFISSÕES (1977)
crônicas
A
SERPENTE (1978)
peça
teatral
FLA-FLU...
e as MULTIDÕES DESPERTARAM (1987)
crônicas
MEMÓRIAS:
a MENINA SEM ESTRELA (1992)
romance
A
VIDA COMO ELA É...: O HOMEM FIEL e OUTROS CONTOS (1992)
contos
A
DAMA do LOTAÇÃO e OUTROS CONTOS e CRÔNICAS (1992)
contos
e crônicas
A
COROA de ORQUÍDEAS (1992)
contos
O
REMADOR de BEN-HUR (1992)
crônicas
A
CABRA VADIA: NOVAS CONFISSÕES (1992)
crônicas
À
SOMBRA das CHUTEIRAS IMORTAIS: CRÔNICAS de FUTEBOL (1992)
crônicas
A
MULHER do PRÓXIMO (1992)
crônicas
POUCO
AMOR NÃO é AMOR (2002)
contos
O
PROFETA TRICOLOR (2002)
crônicas
NÃO
se PODE AMAR e SER FELIZ ao MESMO TEMPO (2002)
crônicas
O
BERRO IMPRESSO das MANCHETES (2007)
crônicas
A
PÁTRIA de CHUTEIRAS (2012)
crônicas
BRASIL
em CAMPO (2018)
crônicas
A
DAMA do LOTAÇÃO
Às dez horas da
noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que
andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A
essa hora?
E ele,
desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
— Pois é, meu
pai, pois é!
— Como vai
Solange? — perguntou o dono da casa.
Carlinhos
ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e,
sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai,
desconfio de minha mulher.
Pânico do
velho:
— De Solange?
Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu,
amargo:
— Antes fosse,
meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas…
E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho,
que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer
suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com
você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético,
abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine!
Duvidar de Solange!
O filho já
estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for
verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia,
eu mato, meu pai!
A
SUSPEITA
Casados há dois
anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general,
em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de
Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de
Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era “um amor”; os mais
entusiastas e taxativos afirmavam: “É um doce-de-coco”. Sugeria nos gestos e
mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e
diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o
mesmo. E todavia… Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o
casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram
pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do
jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este
curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de
Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo
e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação
interior: “Ora essa! Que graça!”. A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele
já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal,
parecia pouco. Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um
contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o
primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que
houve, direitinho!
O filho contou.
Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito!
Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um
verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu
em fazer confidências:
— Meu filho,
esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes
de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me
traía! Vê se é possível?!
A
CERTEZA
Entretanto, a
certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele.
Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da
mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele
estava “certo”. Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na
cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei
no lotação com tua mulher.
Mentiu sem
motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois
do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o
Assunção?
E ela, passando
verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E
por que ontem?
— Nada.
Carlinhos não
disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o
embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A
adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala;
disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um
instantinho, Solange.
— Vou já, meu
filho.
Berrou:
— Agora!
Solange,
espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, à chave. E
mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da
mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta
negar! Eu sei de tudo!
E ela,
encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que,
criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no
rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive
particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então
não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só
no fim, apanhando o revólver, completou:
— Vou matar
esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até
então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela
mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o
grito:
— Ele não foi o
único! Há outros!
A
DAMA do LOTAÇÃO
Sem excitação,
numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes,
saía de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco,
ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez —
foi até interessante — coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de
macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a
cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua
maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e
desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: “Eu desço contigo”. O
pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e
esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas
outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à
distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses
anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele
se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a
relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano… Carlinhos berrou: “Basta! Chega!”.
Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do
Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor
extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram
tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou
ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa,
embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda,
intacta, imaculada. Como é possível que certos sentimentos e atos não exalem
mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho
culpa!”. E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência
infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o
marido passa-lhe a mão pelos quadris: — “Sem calça! Deu agora para andar sem
calça, sua égua!”. Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do
quarto; parou, na porta, para dizer:
— Morri para o
mundo.
O
DEFUNTO
Entrou no
quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos.
Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco
depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e
muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está
na mesa.
Ele, sem se
mexer, respondeu:
— Pela última
vez: morri. Estou morto.
A outra não
insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não
faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou.
Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como
tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações,
nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma
cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou
horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido
vivo.