fevereiro 19, 2025

................................................ Na TEIA do DESTINO AZUL – Livro 02



Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
FERNANDO PESSOA
(1888 – 1935. Lisboa / Portugal)

 
um poeta-freak, cristão-alquimista,
druída-mensageiro, amante-solitário,
pacífico-conservador, sioux-cigano,
aventureiro-metafísico, marinheiro-guerreiro,
cibernético-gótico, filósofo-jardineiro sou
 
Ilustrações:

ALEXANDER KANOLDT
(1881 – 1939. Karlsruhe / Alemanha)
 
 
prefácio
 
A certa altura da leitura de “Na Teia do Destino Azul”, livro de poemas de Antonio Nahud, o leitor terá que fazer uma inflexão interior para reencontrar seu lugar próprio no mosaico de colagens, paráfrases e imagens que o incorporam, e do qual resulta uma escrita labiríntica como um novo dédalo. Uma espécie de panteísmo reatualizado acena a cada parágrafo, a cada título, mesmo, que Nahud semeia aleatoriamente, quase por descuido, diríamos, nas linhas e entrelinhas de seus poemas, como a divertir-se em propor enigmas ou a incorrer no risco das aporias sob o dossel da escrita poética.
 
Poesia do eu, mas também de um indiscernível
“nós”, genérico e indefinido que tanto pode ser a voz de Epicuro, como um Espinosa ou um Agamben, entre outros nomes disseminados e incorporados à persona do poeta, a escritura de “Nas Teias do Destino Azul” se espalha como água revolta impelida por ventos desordenados, sem nunca achar seu leito próprio, o que a força a repousar sobre leitos provisórios, até que um novo impulso a lance em busca de seu legítimo, mas incerto, leito.
 
Há toda uma poética implícita na poesia de
“Nas Teias do Destino Azul”, como quando Nahud diz, empregando os termos mais triviais, de seu próprio ofício: “O poeta é um habitante do verso”. E aí está longe da concisão metafórica do vocábulo “habitante”. Antes, se identifica com a confraria dos poetas do Aberto (reportando-se ao conceito popularizado por Agamben), a que chegaram outros poetas, como o americano Robert Frost, o português Ruy Bello, o francês Francis Ponge e o brasileiro Manoel de Barros. E, por que não, Vinicius de Moraes, o poeta da flor (“Para uma Menina com uma Flor”)?
 
Não é menos verdade afirmar, portanto, que Nahud cultiva as invenções líricas com a determinação de um obstinado:
“Olhares são marés vivas que devoram / o mundo”; ou “Quero estar no campo desprotegido / como árvore”. Enfim, a leitura de “Nas Teias do Destino Azul”, que não por acaso é encimada por uma epígrafe de outra confissão mais antiga, tecida por motivações distintas, é, em grande medida, uma reflexão sobre a transitoriedade da vida e a advertência horaciana do Carpe Diem.
 
Chega em boa hora, portanto, essa poesia gerada pelas metamorfoses do eu lírico de Nahud, a nos lembrar que o tempo, o nosso tempo, que é também o tempo agostiniano, diferentemente do tempo do Absoluto, conta-se em anos
“que vão e vêm, para que todos venham”.
 
NELSON PATRIOTA
(1949 – 2021. Natal / Rio Grande do Norte)
poeta, crítico literário e tradutor
 

01

São de palavras, o chão de minha casa,
construída numa floresta de símbolos.
Quero ser habitante da essência azul,
arquiteto da emoção e da beleza.
 
02
A palavra aproxima-se do poema
procurando o movimento da escrita,
como folhas ao vento. Ofuscada
pelo ouro do sol interior, traça
linhas possíveis nas sombras do texto,
iluminando verdades secretas.
 
03
O sonho está contido nas palavras,
no corpo desnudo e liberto, ou
na luz magna azulada do espírito,
aqui, comigo, nos versos.
O desenterramento do ser
dando existência ao poema.
 

04
Em Rimbaud bebi a profunda desordem da criação.
Com Carroll vi que o fundo da literatura é a imaginação.
De Dostoievski sofri o humanismo da sua condição .
Através de Clarice senti o seu caráter intimista.
E com Hesse descobri a chave para o espírito.
 
05
O poeta é um habitante do verso.
Desce dos céus futuros, rompendo horizontes.
Na sua presença, estremecem os corações
na horizontal secura do erotismo banal.
Aventureiro, lê o destino azul do ser.
É o abrigo de todo o amor.
O leito de toda a confiança.
Um dia, partirá p’raterra incógnita,
com um golpe de vento,
deixando palavras adubadoras
na erma planície mortal.
 
06
Escrevamos as linhas nossas
nos trilhos do coração, esperando
por uma revelação radical,
que não necessite de palavras,
e contudo, nos una como irmãos.
 

07
Quero estar no campo desprotegido
como árvore. Sentir nas
raízes a vasta atmosfera do todo.
Deixar correr nas veias a comoção
da liberdade de ser único,
na planície do mundo.
Volver os ramos para o céu
que me interroga, e acolher os
bem-aventurados pássaros
na copa da existência.
 
08
Sou o fogo que desperta o amanhecer
em países inventados no coração.
Sou o incorruptível de uma cabeça iluminada
a força da justiça que há-de vir.
E do mistério venho, para ele vou,
do sangue azul para a terra, dela sou.
 
09
Sou livremente obrigado a ser justo,
equilibrado. A fazer da cruz o sinal
com meu corpo feito ave da luz,
que brilha, oculta, da massa vazia,
tal diamante sagrado, lanterna
em noite tenebrosa, a guiar, misteriosa,
meu barco, para o porto de ser
obrigatoriamente resiliente,
na consciência de um mundo azul.
 

10
Viajei de carro e de comboio, de navio,
de avião, e com meus benditos pés.
Continentes, florestas, desertos.
Dormindo sobre fendas e abismos
com as feras a rondar a poesia
à vastidão da dor e da esperança.
Vida de aventura, amor, rebeldia,
nas águas profundas do desmundo.
Ao deus azul da juventude,
Ergo a bandeira da liberdade
que ainda hoje respeito.
 
11
Desembarquei minh’ alma nesta terra,
com a liberdade esmagada sob as pedras
da hipócrita moral inquisidora. Luto,
desde então, para encontrar
um lugar no coração:
enquanto incendeiam a última flor.
Mas esta terra não é livre, há muito
se queimou nos fogos que ateou.
 
12
Estamos, assim, atirados
no mundo, imponderáveis,
como o vôo de um pássaro azul
espreitado pela mira de um
destino, que ora resplandece
no susto da revelação,
ora se oculta na enigmática
existência. Máscaras do
mesmo, por vezes,
eternamente regressando
em direção ao vazio.
 

13

Olhares são marés vivas
que devoram o mundo.
Alguns há, que assustam.
Outros, tão frágeis, suaves,
duram a vida da borboleta,
deixam marcas profundas
na surpreendente arena da vida.
São esses raros, delicados, que eu amo.
 
14
Tudo flui…as relações entre as pessoas
cada vez mais imponderáveis,
inquietantemente inexplicáveis.
Qualquer palavra é ambígua,
obscura, total, inapreensível,
secretamente contraditória,
explicitamente fulgurante.
Um momento: uma verdade.
Somos ilhas ocultas.
 
15
Ficarão as manhãs de jasmim intenso,
que se repetirão sem mim,
as manhãs em que a maresia
embriagava infâncias azuis. Passeios
em jardins à beira-mar, nas longas tardes
de verão. Velas, ondas, pássaros, ventos,
beijos verdes, risos, tênues lembranças.
Assim me eternizo.
 

16
Você é a flor azulada que amo,
encontrada no acaso dos dias, e
tem a absoluta naturalidade de estar
no meu coração, perfumando, como parte
do meu desatino, sendo sempre flor, para mim,
no meu destino, numa floresta sem ninguém,
companheiro imortal, sem fim.
 
17
Ao dizer-me adeus ao meu mundo azul,
tornou-se meu invisível anjo da guarda.
 
18
Um poeta louco numa noite. Um louco
aventureiro num castelo inventado.
O aparente vazio de seu espírito, iluminado,
contudo, pela presença de uma mística  lua,
nos fragmentos de sua arte. Cego de
excesso de magia lunar para as trevas do mundo,
e de olhar aberto para a eternidade.
 

19
Rumor sem fim do mundo:
silêncio do coração. 
 
20
Por trás deste aparente equilíbrio,
espreita a morte vencedora.
Árvore de mim-mesmo,
cresci porque busquei, sem cessar,
a luz, fonte da vida. Nesta ascensão,
desde que aprendi a fitar o sol,
sinto apodrecer minha raiz,
vivendo e morrendo a cada dia.
 
21
Encerra-se a vida,
diz o poeta em seu castelo
de loucura e solidão.
No seu zênite, o azul,
antes das chuvas,  
antes do obscuro.
 

22
Já metade do rio deixei p’ra trás,
olham-me de longe no cais da memória,
as manhãs de neblina e os perfumes dos jardins
que vivi na fantástica fábrica do mundo. Sigo
a jornada anil, todavia, e como barco regressado
ao estaleiro matricial, numa noite de luar,
sei que um dia desaguarei no oceano final.
 
23
Conheço o mundo,
posso partir. A vida azul
espera por mim.
 
24
Agora, posso desaparecer,
para mais além surgir. Adeus mundo,
adeus infância, fantasmas reais,
amor, adeus. Voltaremos a encontrar-
-nos no espaço mais sensível que
possuímos, nessa casa invisível,
sem paredes, sem palavras, intangível
pelos sentidos, pela razão, e que
se chama coração.
  
25
Adeus terra sagrada, natal,
Devieste, violada, repelente
lixo do homem. Adeus, homem,
tu que és a espécie mais inimiga da vida.
Embarco de regresso ao meu silêncio azulado,
porque o meu ser já nem respira na grandeza
das matas sem-fim, como outrora nos vales medievais,
circundados de luz espiritual.
 

poemas
01, 02, 03, 05, 06, 07,  08, 10, 11, 13, 20, 21 e  23
publicados no livro
“Confissões”, de 2014
 
LEIA TAMBÉM
Na TEIA do DESTINO AZUL – Livro 01

 

fevereiro 06, 2025

..................................... HÉLIO PÓLVORA: o TCHEKHOV GRAPIÚNA


 

Ler e escrever dá sentido à minha existência,
que, de outra forma, seria baça
e vazia de significados.
HÉLIO PÓLVORA
 
Ilustrações:
GENARO de CARVALHO
(1926 – 1971. Salvador / Bahia)

 
 
Em MEMÓRIA do MESTRE HÉLIO PÓLVORA
 
Tive a sorte de conhecer cara-a-cara grandes escritores do Sul da Bahia. Estive um dia inteiro com Adonias Filho, na sua fazenda Aliança, em Inema. Conversei longamente com Euclides Neto no Conselho Nacional dos Produtores de Cacau. Conheci Telmo Padilha muito bem. Encontrei-me inúmeras vezes com Florisvaldo Mattos e Antônio Lopes. Visitei Jorge Amado em Salvador e o entrevistei no Estoril, em Portugal. Almocei com Jorge Medauar e sua esposa Odete em São Paulo. No entanto, entre todos eles, tenho carinho especial por HÉLIO PÓLVORA. Conheci-o em 1982, ao ganhar o primeiro lugar – na comissão julgadora, Valdelice Pinheiro, Tica Simões, Cyro de Mattos e Ritinha Dantas – no concurso de contos que levava seu nome, com “Feminina Falácia Existencial”, um livro inédito que perdi em um ônibus. Visitei-o em saudosas tardes no CNPC.  
 
Era uma época de frenéticas atividades culturais em Itabuna, tempos do PACCE, do poeta Telmo Padilha, da sexy Graça Viana, Kátia Vieira, Alceu Pólvora, Renart, meu tio-padrinho Gervásio Santos, Eduardo Anunciação, Valdirene Borges, Hélio Pitanga, Grupo de Arte Macuco. Eu um garotão no meio de feras! Incentivado por Hélio e Telmo, fiz uma exposição de desenhos e colagens, “Asas”, no saguão do CNPC. O escritor publicou meus contos imaturos no “Cacau/Letras” e lançou-me no jornalismo em 1988. Citou minha literatura iniciante em “Os Seres e as Cores nas Terras do Sem-Fim” (1994) e “O Espaço Interior” (1998), escrevendo: “Atento à modernidade literária, empenhado na estrutura e no que narrar, o novo ficcionismo da Região Cacaueira, no qual despontam nomes expressivos como Antonio Nahud, já transcendeu a saga cacaueira”. 
 
hélio pólvora, eu e gervásio santos
Um dos maiores contistas da literatura brasileira, HÉLIO PÓLVORA (1928 - 2015. Itabuna / Bahia) nasceu na fazenda Mirabela, filho de um pequeno lavrador, descendente de sergipanos, que se estabeleceu no Sul da Bahia para o cultivo do cacau. No início dos anos 50, publicou seus primeiros contos e colaborou, como correspondente na zona cacaueira, no “Jornal da Bahia”. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1953, onde residiu durante 32 anos, numa experiência profissional vitoriosa, fazendo jornalismo e literatura. Seu primeiro livro, “Os Galos da Aurora”, publicado em 1958,
selo da Civilização Brasileira, com o conto-título vencera, pouco antes, concurso da revista “A Cigarra”. Em 1966, lançaria outra obra fundamental, “Estranhos e Assustados”. Seguiram-se 30 outros livros – de contos, romances e críticas -, participação em dezenas de antologias e tradução para seis idiomas.

Sua escrita é densa, com sutil ironia, manejo depurado da linguagem e estética sóbria. Como tradutor respeitado, verteu cerca de oitenta livros para o português, incluindo criações de William Faulkner – o seu autor favorito –, Ernest Hemingway, Mary McCarthy, Virginia Woolf, Graham Greene etc. Como crítico literário e de cinema, ensaista e cronista, atuou em veículos importantes de comunicação, entre eles, “Correio da Manhã”, “Diário de Notícias”, “Diário Carioca”, “Jornal do Brasil”, “Correio Braziliense”, “A Tarde” e a revista “Veja”. Membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia de Letras de Ilhéus. Nos anos 80, HÉLIO PÓLVORA voltou a morar na sua terra natal, editando com Telmo Padilha o sofisticado jornal literário “Cacau/Letras”. Certa vez, pediu para ler contos de um livro meu premiado na ocasião. Dias depois, inseguro, apresentei “Diário de Loucura e Razão” e “As Queridinhas”.
 
Sugeriu que eu me sentasse e os leu na hora, na minha frente. Vez ou outra tirava os olhos do papel e me olhava sério. Por fim, perguntou: “Você mesmo que escreveu, menino?”. “Sim”, respondi. “Não copiou de um livro?”, insistiu. “Claro que não”, afirmei. “Muito bem. São bons, vou publicá-los no nosso jornal”. Foi um dos momentos felizes de minha vida. Poucos anos depois, em 1987, ao fundar o jornal “A Região” com o jornalista Manoel Leal, convidou-me para fazer parte da equipe.  Eu havia iniciado no jornalismo em 1986, na “Folha do Cacau”, do lendário Bill Haun, entrevistando artistas (Vera Fischer, Mário Gusmão etc.) e com coluna semanal, “Ideia Nova”, mas sem convicção do ofício. Apadrinhado por HÉLIO PÓLVORA, conheci o contundente e polêmico Manoel Leal. Ficamos camaradas. Gostava do humor cáustico, da audácia de Manoel. Ele nunca foi santo, porém era realista e admirável, um dos ícones do jornalismo da Região Cacaueira. 
 
cândido portinari, 1954
Trabalhamos juntos algum tempo, fiz diversas reportagens e entrevistas, enquanto atuava também como repórter na TV Cabrália, da Rede Manchete. Em 1989, mudei-me para São Paulo, continuando a enviar entrevistas e matérias, entre elas com diversos grapiúnas que moravam na capital paulistana, do médico Galvão Filho ao estilista Ney Galvão. Ao partir, recebi do autor de “Mar de Azov” e de Telmo Padilha gentis cartas de apresentação endereçadas a Jorge Medauar e ao editor Gumercindo Rocha Dórea. Em 1990, HÉLIO PÓLVORA fixou residência em Salvador, e Leal foi covardemente assassinado em 1998, por questões políticas, aos 67 anos, com seis tiros na porta de casa. A minha admiração pelo escritor não estacionou nas primeiras impressões, só aumentou, e a admiração ganhou tintas de amizade.

 
Vindo a Salvador de São Paulo e depois da Europa, sempre o visitava no seu apartamento na Ladeira da Barra, conhecendo sua simpática esposa Maria. Ficávamos horas trocando ideias literárias. Selada a amizade, pude ver que ele era um admirável conservador. Certa vez contei da aproximação íntima com a poeta Hilda Hilst e a escritora Lygia Fagundes Telles, e como ambas o elogiaram, com Lygia afirmando que nos seus contos havia “sensibilidade de vidente”. Ele riu, satisfeito. Em 2004, meu “Livro de Imagens” foi aprovado para publicação na Coleção Selo Letras da Bahia, da Fundação Pedro Calmon/Secult, por uma comissão composta por Gerana Damulakis, Aleilton Fonseca, Myriam Fraga e HÉLIO PÓLVORA. No prefácio, Diogenes da Cunha Lima, presidente da Academia de Letras do Rio Grande do Norte, e com capa do artista Moisés Ribeiro.
 
Ele escrevia com densidade e talento, ao contrário de muita gente que faz pose de bacana. Sua literatura se nutre de lembranças e memórias, se alimenta do passado grapiúna ou do carioca, numa verdadeira narrativa encantatória de mil e uma noites. Uma narrativa de fino trato, de sensibilidade. Como os mestres grapiúnas Jorge Amado e Adonias Filho, sabia expor os valores, as angústias, as feridas e as referências culturais das Terras do Sem-Fim. Li quase toda sua obra, reli diversos contos. Sendo a leitura mais recente, no ano passado, do romance “Inúteis Luas Obscenas”, uma trama rural marcada por desejo, culpa e violência. Digo que sua escritura é intensa, elegante e equilibrada. Sua paisagem é tanto o campo como a cidade. Uma prosa cuidada e expressiva. Inúmeros escritores a elogiaram, de José Cândido de Carvalho a Wilson Martins.
 
Na sua ficção, fatos aparentemente triviais acabam conduzindo a uma reflexão filosófica existencial. Em cada conto seu, o narrador dita os passos da trama com intimidade, senhor dos fatos, dos enredos e dos desfechos, na dosagem exata, com andamento bem ajustado. Seus contos são exemplos de técnica, de adequação e de ritmo. Neles, as informações se adensam num movimento contínuo, concentrando sentidos para instaurar efeitos de leitura e de compreensão, como fluxo revelador que impressiona e provoca a reflexão. O mestre HÉLIO PÓLVORA morreu no dia 26 de março de 2015, aos 86 anos. Tinha câncer e faleceu de uma parada cardiorrespiratória. O corpo foi cremado no Cemitério Jardim da Saudade, na capital baiana. A prefeitura de Itabuna decretou luto oficial de três dias. Deixou a viúva Maria e três filhos, Hélio, Raquel e Fernanda.
 

TODA a OBRA de HÉLIO PÓLVORA
 
Os Galos da Aurora (1958)
 
A Mulher na Janela (1962)
 
Estranhos e Assustados (1966)
 
A Força da Ficção (1970)
 
Noites Vivas (1971)
 
Graciliano, Machado, Drummond & Outros (1973)
 
Para Conhecer Melhor Gregório de Matos (1974)
 
O Menino do Cacau (1975)
 
Massacre no Km 13 (1980)
 
O Grito da Perdiz (1982)
 
10 Contos Escolhidos (1984)
 
Mar de Azov (1986)
 
Xerazade (1992)
 
Um Pataxó em Chicago (1994)
 
Os Seres e as Cores nas Terras do Sem-Fim (1994)
(co-autor José Carlos Capinam)
 

O Espaço Interior (1998)
 
Crônicas da Capitania (2000)
 
A Guerra dos Foguetões Machos (2000)
 
O Rei dos Surubins (2000)
 
A Sosígenes, com Afeto (2001)
 
Itinerários do Conto: Interfaces Críticas
e Teóricas da Moderna Short Story (2002)
 
Contos da Noite Fechada (2003)
 
Memorial de Outono: Vivências
de um Velho Escritor Zangado (2005)
 
De Amor Ainda Se Morre (2008)
 
Inúteis Luas Obscenas (2010)
 
Melhores Contos de Hélio Pólvora (2011)
 
Don Solidon (2011)
 
Contos e Novelas Escolhidos I & II (2013)
 
Noites de Salto Alto (2018)
 

SETE VEZES HÉLIO PÓLVORA
 
Para o escritor itabunense HÉLIO PÓLVORA, a literatura é arte aberta a investigações e aventuras. Contista de qualidade, aprofunda e alarga o conceito de conto literário, conjugando literatura com significância e ambientando textos na zona grapiúna do cacau, em Salvador ou no Rio de Janeiro. Afirmando que tudo é possível no terreno da invenção, escreve utilizando de uma técnica primorosa, cheia de verdade e beleza. Na obra do autor de “Noites Vivas”, a realidade inventada permite a travessia por zonas de encantamento.
 
01
A EXPERIÊNCIA PESSOAL
 
Tudo — ou quase tudo na escrita - vem da experiência pessoal. Longe, porém, a ideia de autobiografia. Todo escritor que adquire uma expressão e, por ela merece ser lido, escreverá a partir do seu ponto de vista, quer dizer, de um certo núcleo crítico em que entram consciência e coração, lucidez e sonho. Prosa de ficção é arte sempre pessoal, acompanha o autor ao longo de sua vida. O processo de criação é um rio subterrâneo do qual nem sempre ouvimos o marulhar. O que um ficcionista escreve, na ilusão de que está criando, ele apenas o arranca de dentro de si, acrescenta, suprime ou mistura, segundo as artes de sua composição. Escrevemos sobre perdas, ausências e buscas, sobre fracassos e êxtases, que são matérias do coração humano. Procuramos explicação ou justificativa para a vida, e também denunciamos situações torpes a que o homem está sujeito. Esse material passa por nossa sensibilidade, que fica exposta, é uma ferida aberta, aquela ferida que não cicatriza. De modo que a experiência pessoal é o que conta: quanto maior, mais fundo o escritor tenderá a ir na sua danação, e também na maldição de sofrer ou viver outras vidas e outras dores.
 
02
O COMEÇO

Me lembro exatamente de quando comecei a ler. Houve um livro, intitulado “Crestomatia”, de Rodegásio Taborda, que me apresentou escritores portugueses e brasileiros. Entre os nossos, páginas de Euclides, Gonçalves Dias, Casimiro, Pompéia, Coelho Neto, Machado e outros. Houve outras antologias, como os livros de leitura de Erasmo Braga e as “Páginas Floridas”, de Silveira Bueno. Alguns textos acabaram decorados. Ainda hoje eu recito “As Andorinhas de Campinas” e estrofes de “Os Lusíadas”. Eu estava contagiado pela literatura e não sabia. Pode parecer exagero, mas naqueles idos um curso primário equivalia a um vestibular de hoje. Tomei gosto pela leitura e, como vivia em cidade pequena do interior, de vida enfadonha, comecei a comprar livros. O temperamento introvertido, o pendor ao devaneio e à contemplação fizeram o resto. Há outro fator: nossa casa, mesmo a da fazenda, tinha livros, nela entravam jornais. Meu pai voltava da feira em Itabuna, aos sábados, com algum livro. Minha mãe acompanhava enredos tenebrosos de ficcionistas franceses nos folhetins que mascates lhe vendiam. Um dia, na escola, escrevi uma descrição que agradou ao mestre. Era sobre o mamoeiro no nosso quintal. Nada de especial, mas a minha visão do mamoeiro desfigurava-o, tal como certas pinturas modernas desfiguram a realidade. Era sinal de que o vírus literário já me roía por dentro.
 
03
INFLUÊNCIAS
 
Graciliano Ramos foi um dos autores que ajudaram a deflagrar em mim o escritor. Quando li “Angústia”, parti logo para uma reavaliação do meu universo geográfico “localizado”, abri as janelas e olhei para longe. Olhei sobretudo para os meus interiores e procurei ver outras pessoas por dentro. A arte não imita a realidade. A arte é uma transfiguração da realidade, sem intenção de traí-la. Na aquisição dessa certeza, William Faulkner foi um mestre, como o foram Joseph Conrad, Anton Tchekhov. Hemingway foi outro guia, com ele aprende-se a desenvolver a ação através do que as personagens fazem, dizem, pensam. O bom ficcionismo americano, desde Mark Twain, mostra que só se deve escrever sobre o que se conhece, o que feriu a emoção — e com um estilo consistente em que a prosa se deixe impregnar pela musicalidade e pelo sentimento poético.
 
04
O TEMPO

Muito escritor de renome tem advertido: literatura é coisa séria. Os deslumbrados fecham os ouvidos e vão em frente com empulhações que acabam competindo com o produto verdadeiro, à falta de críticos que separem o bom do ruim. Há um nivelamento por baixo. O texto transfigurador vê-se forçado a competir com o texto de literatura factual. O conto que é uma experiência de vida, um prolongamento de vida, vê-se comparado ao chamado miniconto, que é uma burla. Somente o tempo, esse crítico supremo, poderá enterrar a má literatura.
 
05
LER e ESCREVER
 
Escrever, para mim, tornou-se tão essencial quanto ler. São as atividades menos enfadonhas que conheço — e quando temos a impressão de que saíram a contento, elas nos exaltam, e deslumbram, e nos fazem andar pelas ruas em estado de graça e estupor. Escrever é a minha trincheira. Eu não saberia fazer outra coisa. Ler e escrever dá sentido à minha existência, que, de outra forma, seria baça e vazia de significados. Uns ganham dinheiro, outros roubam, outros matam, há os que choram. Eu escrevo. A escrita produz mudanças que se refletem em nossa maneira de ser e de estar no mundo, de ver e conviver. No princípio era o Verbo, que, com sua força motora, engendrou o discurso com que nos iludem e iludimos. Esconder abismos ou cavar abismos, tudo dá no mesmo. A vida é absurda, somente a escrita lhe dá aparência de lógica. Escrevo como quem morre e como quem vive, a um só tempo, simultaneamente. Penso que a literatura é a minha resistência. Escrevo para um leitor sem rosto. Para um interlocutor que procurei a vida toda — e estava dentro de mim, à espreita. Acho que escrevemos basicamente para nos encontrar, contradizer, condenar e executar, sentenciados e carrascos a um só tempo. Não há heroísmo nisso. Há desespero.
 
06
CONTISTAS BAIANOS

A Bahia teve Vasconcelos Maia, autor do conto “Sol”, que merece qualquer antologia. Também teve Adonias Filho (“Léguas de Promissão”) e Jorge Medauar (“Água Preta”, “A Procissão e os Porcos”). Não é muito, quanto à qualidade. Por quê? Talvez porque a retórica de Castro Alves e outros, na poesia, e de Ruy Barbosa e Afrânio Peixoto, na prosa, impedissem na história curta uma densidade capaz de provocar epifanias. A Bahia parece pensar que ela se basta, que dispensa audiências nacionais — ou então que essas audiências deveriam formar-se naturalmente, sem o esforço da mercadologia.
 

07
JORNALISMO e CRÍTICA LITERÁRIA
 
O jornalismo nos ensinou a ser concisos, o mais possível breves, e a escrever para transmitir significados. A rotina das redações introduz a disciplina. Parece difícil, mas sem treinamento não se forma o atleta. O jornalismo é um auxiliar da ficção e tem a sua literatura própria, as suas regras e conceitos, o seu timbre, o seu tom. Que não pretenda, porém, uma permanência que somente a arte superior da escrita, seja em ficção ou não-ficção, obtém. A crítica está morta há tempo. Temos a troca de amabilidades, que é a crítica cordial, do toma lá, dá cá. São as farinhas trocadas. Esse tipo de crítica é empulhação.
 

fragmentos de um ensaio de HÉLIO PÓLVORA
De ÁGUA PRETA para TODOS NÓS
 
Data de 1945 a estreia de Jorge Medauar em livro e como poeta com “Chuva sobre tua Semente”. O contista estava no poeta, o poeta predispunha ao contista. O conto de Medauar tem um lastro de poeticidade que, sufocado pelo prosador, sobe à tona. Aliás, a sua atitude, como contista, é a do poeta que sente quase antes de ver, porque pressente, e fará da emoção, portanto, a sua voz narrativa. Os assuntos dos contos ajudam a temperar essa veia poética, porque, escrevendo sobre sua terra, Água Preta, se debruça sobre vidas humildes. O contista está identificado com a vida e circunstâncias desses personagens de cidade pequena. Ele próprio se fez menino ali, de pais sírio-libaneses que tentavam melhores condições de vida com o cultivo do cacau.
 
Água Preta, reduto de fazendeiros prósperos, pequenos comerciantes, mascates, vendedoras de angu, trabalhadores rurais, pescadores, ferroviários e ciganos, desperta, desde cedo, a comunhão do menino, que com eles divide e preenche o cotidiano. Mais que os fazendeiros fortes, ele se deixará atrair pelos que dependem de azares, muitos, e sortes ocasionais para tocar as suas vidas. Cria-se entre o futuro escritor e aquelas criaturas um canal de solidariedade que, ao engrossar depois, terá um caudal poético do companheirismo, da solidariedade, da resistência na pobreza. Ao descrever personagens de Água Preta, comuns e exóticos, Jorge Medauar terminaria por incluir a cidade, outrora povoado de Ilhéus, no mapa literário do país. Ele recriaria um condado, nisso se aproximando de Sherwood Anderson, com Winesburg, Ohio, de Faulkner e Thomas Hardy, com os seus condados imaginários de, respectivamente, Yoknapatawpha e Wessex.
 
RETRATOS VIVOS – Por mais nítida que pareça a sua tinta regionalista, Medauar transborda, nos contos, as fronteiras do povoado ou da região, e se amplia e se estende até longe, porque o seu plantador de cacau, o seu comerciante, o seu menino que vai vender caju na feira, o pescador que volta de Ilhéus com um peixe vermelho que não conseguirá vender, a mulher dos bilros, aquele Maçu que, descascando cana, filosofa à porta da venda, são retratos vivos demais para ficar no papel. Eles saltam e entram no movimento das ruas e, melhor dizendo, no fluxo indistinto da consciência coletiva. Quando fez a sua estreia no conto, em 1958, com “Água Preta” – primeiro título de uma louvada trilogia que iria completar-se com “A Procissão e os Porcos” e “O Incêndio” – o conto brasileiro voltara-se, já, para a temática regional, sobretudo para a temática mais próxima, aquela que o ficcionista conhecia, sentia, sofria e pela qual sangrava. A contística de 1930 e anos posteriores retomou contato com a terra, mas o conto de Medauar tem extração posterior - ele vem a ser o fruto da memória.

 
RAIZ RURAL – A arte de magnificar vidas miúdas envolvidas às vezes em acontecimentos anormais, ou que, de tão banais, acabam por adquirir expressão, praticou-a no conto Jorge Medauar. Seus contos de “Água Preta” entrelaçam vidas e criam um microcosmo que se agiganta eventualmente em significados humanos. Se Jorge Amado foi o ficcionista épico, de largos cenários, aquele que cantou o sul baiano sob o estofo da epopeia e como crônica de costumes, e Adonias Filho foi o analista que, debruçado sobre individualidades, engendrou tragédias ditadas por fatores exógenos, Medauar teria sido, no ficcionismo grapiúna, o contista dos pormenores, das impressões, dos incidentes – em suma, daquilo que os franceses chamaram de une tranche de vie.
 
SEM SOMBRAS – Outro aspecto de sua contística é a distância que guarda do maniqueísmo (estou a pensar no realismo socialista) e de um romantismo que poderia ser piegas. Seus personagens de Água Preta e arredores, seus pescadores, canoeiros e carregadores de fardos em Ilhéus, são exatos, cópias faladas dos que ainda se vê hoje. E todos, a par de uma solidariedade que os une para amenizar dificuldades, são otimistas. Não há na galeria de retratos de Medauar personagem que queira ser má, que manifeste pendor sombrio. Todas se esforçam para conduzir, mesmo com percalços, a sua vida aparentemente saudável. O Brasil já foi assim, já foi mais alegre e mais ordeiro. Lembro-me apenas de um final infeliz em Medauar: aquele de “O Toco e a Flor”, de disciplinado romantismo, que dedicou a Jorge Amado.

Ainda que simples ou toscas, as personagens de Medauar se questionam, não se furtando a um balanço de sua situação ou conflito atual. Vale a intuição - aquela sabedoria instintiva. O universo de Água Preta poderá ser pequeno, mas nele habita o homem licencioso e o temente a Deus, o valente e o inseguro, o sensual, o arrogante, o generoso e cruel, o humilde e o fatalista, o solidário e o prepotente - em suma, uma diversidade de comédia humana, que, com todos os seus matizes e ambivalências, vem a ser acentuada pela mistura de sangue e de raças e adquire traços peculiares: um certo toque chapliniano de tragicomédia. Jorge Medauar foi um contador de histórias que, sabendo questionar, tem o seu jeito, o seu estilo. É um vencedor e assim permanecerá enquanto houver quem se interesse por outras vidas narradas por quem as conhece e sabe despertar atenções.

jornal A TARDE
2003

 
GENARO de CARVALHO
 
 
Destacado no panorama artístico brasileiro como tapeceiro, o baiano Genaro de Carvalho exerceu também intensa atividade como pintor e desenhista. Em Paris, foi aluno de André Lhote na Escola Superior de Belas Artes. Participou da Bienal de São Paulo (1951 e 1955) e realizou diversas individuais no Brasil e no exterior. Em Itabuna, numa esquina da Praça Adami com a Avenida do Cinquentenário, criou em 1953 um mural no Edifício Comendador Firmino Alves. Ilustra trabalhadores numa roça de cacau. Num traço firme, evoca a poesia das Terras do Sem-fim, propondo uma viagem pela mata dos frutos de ouro. Mas seu estado atual é lastimável. Faltam azulejos, serve de expositor de anúncios. Ele merece ser admirado, restaurado, divulgado em escolas e na mídia. Pena que estamos numa sociedade viciada em identidades perdidas na poeira dos tempos.
 
 
eu e hélio pólvora nos anos 80