outubro 01, 2015

......................... TORQUATO NETO, NOSFERATU TROPICALISTA



para Morvan

Na madrugada de 10 de novembro de 1972, o letrista e poeta piauiense TORQUATO NETO foi ao encontro da morte em um pequeno apartamento no bairro carioca da Tijuca, onde vivia com a ilheense Ana Maria e o filho Thiago, de três anos. Deixou uma confusa mensagem com letras desiguais e frases entrecortadas, rabiscado em três folhas de caderno espiral: Tenho saudade como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de bananas caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar. O suicídio aconteceu um dia depois do seu aniversário, após uma longa série de tentativas malogradas. Drogado e embriagado, o poeta vinha de uma ronda pelas boates da zona sul – numa delas assistiu a um filme cinemascópico de Rogério Sganzerla -, e assim que a esposa adormeceu, trancou-se no banheiro, vedou as entradas de ar e ligou o gás do aquecedor. Tinha 28 anos de idade. deixando uma obra original que se resume em alguns poemas e trinta letras para canções de Edu Lobo, Jards Macalé, Geraldo Vandré etc. Atuou também em filmes experimentais, foi crítico de cinema, roteirista, produtor cultural, repórter de uma agência de notícias carioca e músico.

De sensibilidade latente e rebeldia romântica, complicado, culto, meigo, provocativo, exaltado e auto-destrutivo, combinava inteligência precisa e poética aguda, resultando numa criação singular. As crises de melancolia e insatisfação o fizeram eliminar boa parte de sua produção literária. Em 1973, o poeta baiano Waly Salomão e a viúva de Torquato, Ana Maria Silva, reuniram no livro “Os Últimos Dias de Paupéria” a produção de TORQUATO NETO: artigos publicados ou inéditos, fragmentos do diário sobre a passagem do autor pelo hospício, poemas. Acompanha um compacto com quatro músicas e comentários de Décio Pignatari, Hélio Oiticica, Haroldo e Augusto de Campos. Tornou-se uma espécie de bíblia da chamada poesia marginal dos 1970. Nele, a desenvoltura, a inquietação, a luminosidade do poeta. Nascido em 9 de novembro de 1944, em Teresina, Piauí, numa família abastada, leu toda a obra de Shakespeare aos doze anos e dela tirava conceitos, discutindo-os com amigos. Magro, pálido, pés e mãos grandes, possuía uma sensualidade que nem os excessos alcoólicos ocultavam. Escrevendo compulsivamente, preenchia cadernos com poemas e reflexões. 
 
torquato e vinicius de moraes
Estudou o científico em Salvador. Na época, a capital baiana vivia grande agitação cultural, de Glauber Rocha a Lina Bo Bardi, de Othon Bastos a Jurema Penna, impulsionando um excepcional ambiente artístico. Irreverente, TORQUATO NETO foi expulso da escola de padres, mudando-se para o Rio de Janeiro em 1963, acatando o desbunde existencial em plena efervescência dos festivais de música. Admirando Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues, costumava segui-los nas ruas, sem se deixar perceber, num prazeroso ritual secreto. Na mesa de um bar, o botequim “Mau Cheiro”, no Arpoador, conheceu sua futura mulher, Ana, uma garota inteligente e de personalidade forte com quem viveria cinco anos, mas sem desprezar outras experiências sexuais. Ao lado de amigos como Jards Macalé, viveu uma “vagabundagem inspirada”. A festa acabou com o regime militar de 1964. A partir dali, a felicidade passou a estar, sempre, ligada à angústia. Sou um homem triste, ele escreveu em carta a um amigo, sinto que sou um homem destinado à latrina. Trabalhou em jornais, gravadoras, agências de publicidade e até no Aeroporto Santos Dumont. Fez parte do corpo de redatores da revista “Cláudia”, “Jornal do Brasil” e “Estado de São Paulo”

Escreveu o roteiro de três shows de sucesso: “Pois É”, “Maria Bethânia” e “Ensaio Geral”. Participou de performances, produziu espetáculos multimídia, roteirizou com o poeta-compositor José Carlos Capinam o programa de tevê “Vida, Paixão e Banana do Tropicalismo. Escreveu a coluna “Pulg”, sobre cinema, no “Correio da Manhã”; outra de música popular no suplemento “O Sol”, do “Jornal dos Sports”, e no auge do tropicalismo, em 1967, publicou “Tropicalismo para Principiantes, convidando a viver a tropicalidade e o novo universo que ela encerra.  A TROPICÁLIA renovou a música popular brasileira, num reinado com conceitos hippies, encontros nas “Dunas do Barato” em Ipanema, Arembepe, garotas de minissaia, rapazes cabeludos, erva e ácido. O designer Rogério Duarte nomeou o espírito dessa época como “Apocalipopótese”. Nessa doideira, TORQUATO NETO passava as noites em claro, andando com um caderno cheio de poemas que um dia seria um livro e vestido de maneira tradicional, transformando-se numa figura pitoresca.

Uma de suas manias, copiar frases de para-choque de caminhão. “Não me siga que não sou novela”, por exemplo. Contraditório, freguês de cachaça e tira-gosto gorduroso nos botecos suburbanos e de LSD e champanhe em sofisticadas festanças, travestiu-se jocosamente para o filme “Helô e Dirce”, de Luiz Otávio Pimentel, filmando na Cinelândia e no local de pegação Cine-Hora, mas no dia seguinte mergulhou na fossa, dilacerado pela culpa, como sempre acontecia ao libertar a bissexualidade. De 1968, no álbum “Tropicália ou Panis et Circensis” se encontra a famosa canção “Geleia Geral”, com letra-manifesto de TORQUATO NETO. O título teve origem numa expressão pregada por Décio Pignatari, um trocadilho com “Geleia Real”.

A polêmica coluna de TORQUATO NETO, com o mesmo título da canção, era um espaço crítico-criativo-poético publicado no jornal “Última Hora”, de agosto de 1971 e março de 1972. De linguagem agressiva e descrente de qualquer função didática, chegou a se dirigir aos leitores com um “Alô, alô idiotas”. Nela, defendia as manifestações artísticas de vanguarda, divulgava o universo pop internacional e a cena underground brasileira. Militante ferrenho da implantação da contracultura no Brasil, o poeta aproveitou o espaço para abrir fogo contra o Cinema Novo, questionando o comprometimento político dele ao acusá-lo de lacaio de cargos e verbas oficiais, e atacando incansavelmente o debochado “Pasquim. Certa vez, ao encontrar Jaguar, um dos humoristas do periódico, arrancou-lhe os óculos, pisou-os e disse: Um cego não precisa de óculos. Como editor, ele fundou o alternativo “Presença” e pouco antes de morrer, junto com Waly Salomão, projetou NAVILOUCA. O destemido Waly radiografou o colega como Astro doido a sonhar. O nosso moço das ânsias. Pobre? Fauve! Fauve? Fraco herói underground. Fraco? Forte herói underground. Leão alado sem juba.

A erudição, lirismo e originalidade poética de TORQUATO NETO deram uma poderosa contribuição ao Tropicalismo. Tímido, desajeitado, revoltado com o mundo, ferino, emocionalmente abalado e criador em crise, exigiu demais de todos, desejando muito além do que já houvera feito. Terminou por se internar no hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, e em clínicas especializadas para superar o alcoolismo, num total de nove internações por livre e espontânea vontade. Para se desintoxicar e dar um tempo, dizia. Sua dor era visível. Torquato apareceu um dia depois de uma internação em um sanatório com o cabelo completamente tosado, um skin head avant-la-lettre, e eu sofri uma premonição terrível e insuportável de uma ovelha negra tosada se oferecendo ao cutelo do matadouro, lembra Waly.

Em 1968 viajou pela Europa com o artista plástico Hélio Oiticica, morando algum tempo em Londres. Vivia-se a época da caça às bruxas ao inconformismo político. o regime militar não alisou e os tropicalistas foram considerados como elementos nocivos e subversivos, perigosos para a segurança nacional. Calado, deprimido, recolhido e magoado com a desastrosa viagem a Londres e o rompimento com os baianos no duro exílio, abateu-se ainda mais com as mortes súbitas de Jimi Hendrix (que ele teria conhecido) e Janis Joplin. Ainda assim, incentivou a originalidade do emergente Cinema Marginal e de seus ícones Júlio Bressane, Ivan Cardoso e Rogério Sganzerla. Num super-8 de Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil”, fez o papel-título, numa brincadeira com seu apelido, atuando com Scarlet Moon de Chavelier. Ele tinha identificação com os vampiros, não gostava de claridade e era elegante como um conde da nobreza, justificou, mais tarde, o cineasta. De volta a Terezina, em 1971, filmou sob a direção de Carlos Galvão, “Adão e Eva no Paraíso de Consumo”. No mesma época, compôs aberturas e trilhas sonoras de telenovelas como “Minha Doce Namorada e “O Homem que deve Morrer”. Terminou brigando com a Globo e com o Conselho Nacional de Direitos Autorais. Seu amigo Ivan Cardoso dirigiu o documentário “Torquato Neto, o Anjo Torto da Tropicália.

Haroldo de Campos traduziu TORQUATO NETO: Verlaine escreveu sobre os poetas malditos – que eram aqueles simbolistas rejeitados pela sociedade. E o Torquato tem muito desse aspecto. Outro poeta, Chacal, num verão de 1972 na Bahia, encontrou Torquato de olhos e boca vermelhos, cabelos em chamas pela Avenida Sete. Essa foi a imagem que me ficou na cabeça, Torquato pela Sete, vertiginoso, volátil, dando pérolas aos porcos, em sua geleia geral lisérgica. Em 1988, a banda Titãs resgatou para o pop contemporâneo o poema “Go Back”, musicado por Sérgio Britto. Autor de algumas das mais bonitas letras da nossa música popular, bardo alucinado, vértice tropicalista e um dos nomes mais influentes do panorama cultural de sua época, o nordestino que desatinava e desafinava o coro dos contentes, não segurando a barra dos anos de chumbo, escreveu: É preciso não beber mais. Não é preciso não sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública. Não conseguiu parar de beber a agonia do mundo.

TORQUATO NETO pôs em curso a poética da resistência cultural. Sua linguagem blasfema e antropofágica faz repensar o Brasil. O terrível é que morreu com asco de sua razão de ser: a literatura. Havia encerrado a possibilidade poética, perdera a fé nas palavras. Pouco antes do suicídio, distribuiu sua vasta coleção de literatura de cordel, queimou a maioria de seus escritos e quebrou a máquina de escrever, dizendo que nunca mais voltaria a usá-la. E assim aconteceu, vencido pelo desejo de desaparecer da face da Terra.

TORQUATO NETO

LET’S PLAY THAT

quando eu nasci
um anjo louco
muito louco
veio ler a
minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that
Até o fim
 
MARGINÁLIA II

eu brasileiro confesso
minha culpa meu pecado
meu sonho desesperado
meu bem guardado segredo
minha aflição
eu brasileiro confesso
minha culpa meu degredo
pão seco de cada dia
tropical melancolia
negra solidão

aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
aqui o terceiro mundo

pede a benção e vai dormir
entre cascatas palmeiras
araçás e bananeiras
ao canto da juriti
aqui meu pano de glória
aqui meu laço e cadeia
conheço na lua cheia
e termina antes do fim

aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo

minha terra tem palmeiras
onde sopra o vento forte
da fome com medo muito
principalmente da morte
a bomba explode lá fora
agora o que vou temer
oh yes nos temos banana
até pra dar e vender
o lê lê lá lá

aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo


SOBRE TORQUATO

“Os Últimos Dias de Paupéria” (1973)
de Torquato Neto

“Geração em Transe: Memórias do Tempo do Tropicalismo” (1996)
de Luiz Carlos Maciel

“Tropicália – A História de uma Revolução Musical” (1997)
de Carlos Calado

“Pra Mim Chega!” (2005)
de Toninho Vaz


 

DESENHO de TORQUATO


21 comentários:

Ricardo Mainieri disse...

Excelente crônica, Naud.
Tenho este livro de Torquato e me identifico bastante com sua proposta contracultural.
Pena que seres como ele e Waly não pertençam mais a este Planeta.
A inquietação cultural é necessária neste mundo atual de medíocres em geral.

Abração.

Ricardo Mainieri

Anônimo disse...

Antonio Naud
Somente hoje li seu escrito sobre Torquato.
Convivemos como internos nos Maristas de Salvador no inicio dos anos 60.Eu no ginásio,êle já cursando o científico.Dele me ficaram as impressões : esquisito ,cegonhento (como chamaram tb Sosígenes Costa),excelente pianista (ganhou vários concursos musicais),excêntrico.Usava contantemente uma boina ( vide capa do LP Tropicália).
Não canso de ouvir PRA DIZER ADEUS ( letra dele e música de Edu Lobo)para mim uma das composições eternas da MPB na interpretação ,sem adjetivos,de Elis Regina. Emilio Suzart

Anônimo disse...

Cinzas e Diamantes já é leitura obrigatória!

Águeda Damião disse...

Valeu Antonio Nahud!

Rita Atir Guedes disse...

MUITO LEGAL!

Rita Maynart disse...

Torquato, o mais tropicalista dos tropicalistas. Os versos crus, simples e belos revelavam um encanto ao mesmo tempo pueril, singelo, abrasador e explosivo. Simultaneamente tb, Torquato vivia profunda e intensamente todos os antagonismos de si em si e as multi-contradições da vida.

Marcos Emiliano disse...

Que bom ver uma publicação dessas não vindo de um Piauiense... E ver nos comentários a importância de sua obra, não só para seus conterrâneos como eu, de sua contribuição tanto para poesia brasileira, mas principalmente para o mais marcante movimento cultural do País... O tropicalismo.

Luiz Barbosa disse...

Beleza

Amaral Cavalcante disse...

Nahud, você é o sonho de qualquer editor.

Léa Lima disse...

Como me seduzem os que são "loucos" transtornados de paixão ! ! !

Necy Santos disse...

Conheci parentes e amigos dele em Teresina/Pi. Ele era o cara.

Águeda Damião disse...


eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

Arlene Venâncio disse...

Adoro ele cajuína q Caetano fez em sua hhomenagem

Paula Dip disse...

Caio F. adorava Torquato, sempre o citava: " Sei que adiante, um dia vou morrer de susto, de bala ou vício no precipício de luzes entre saudade, soluços... eu vou morrer de bruços eu vou morrer nos braços de uma mulher..." gênio! (Letra de Soy Loco por ti America)

Lisiê Bortolanza Ferraz disse...

Parabéns!!! Nahud, tu és show!! Te admiro d+!!!! Sonho em um dia te conhecer... será que um dia tu vens a Passo Fundo??? Sucesso e obrigada pelos teus textos... sempre nos ajudam em todos os aspectos de nossas vidas! Bjão!

Joao Luiz Rosas disse...

Escrever é prazer,um parto da alma e os frutos,uma dádiva para todos. Abraços, sensível e belo amigo.,fico feliz em curtir suas postagens.Parabéns e ainda mais sucesso te desejo e espero.

Anônimo disse...

Estranho, um comentário de anônimo dizendo que Torquato era pianista. Tom Zé mesmo afirma que Torquato não sabia tocar nenhum instrumento. Já li diversos textos sobre o poeta, inclusive biografias e nenhuma delas diz algo sobre ele tocar qualquer instrumento. Será um equívoco? Ass. Esmeralda.

Luduvice Jose disse...

Antonio Nahud, adorei. Excelente postagem referendando de fora magistral o movimento que nasceu baiano e ganhou o país. e o Torquato no cacoete do movimento, nos traz versos universais com cheiro de brasilidade. Grato Nahud!!!!!

Amaral Cavalcante disse...

Devidamente arquivado.

Rita Atir Guedes disse...

Muitos artistas talentosos fizeram a passagem ainda muito jovens. Lamentável. Ele Elvis, Jessé...

Makarios Barbosa disse...

Doce e denso como a cajuína.