para Morvan
Na madrugada de 10 de novembro de 1972, o letrista e poeta piauiense TORQUATO NETO foi ao encontro da morte em um pequeno apartamento no bairro carioca da Tijuca, onde vivia com a ilheense Ana Maria e o filho Thiago, de três anos. Deixou uma confusa mensagem com letras desiguais e frases entrecortadas, rabiscado em três folhas de caderno espiral: “Tenho saudade como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de bananas caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”.
De
sensibilidade latente e rebeldia romântica, complicado, culto, meigo,
provocativo, exaltado e auto-destrutivo, combinava inteligência precisa e
poética aguda, resultando numa criação singular. As crises de melancolia e
insatisfação o fizeram eliminar boa parte de sua produção literária. Em 1973, o
poeta baiano Waly Salomão e a viúva de Torquato, Ana Maria Silva, reuniram no
livro “Os Últimos Dias de Paupéria” a produção de TORQUATO NETO: artigos
publicados ou inéditos, fragmentos do diário sobre a passagem do autor pelo
hospício, poemas. Acompanha um compacto com quatro músicas e comentários de
Décio Pignatari, Hélio Oiticica, Haroldo e Augusto de Campos. Tornou-se uma
espécie de bíblia da chamada poesia marginal dos 1970. Nele, a desenvoltura, a
inquietação, a luminosidade do poeta. Nascido
em 9 de novembro de 1944, em Teresina, Piauí, numa família abastada, leu toda a
obra de Shakespeare aos doze anos e dela tirava conceitos, discutindo-os com
amigos. Magro, pálido, pés e mãos grandes, possuía uma sensualidade que
nem os excessos alcoólicos ocultavam. Escrevendo compulsivamente,
preenchia cadernos com poemas e reflexões.
Estudou o científico em
Salvador.
Na época, a capital baiana vivia grande agitação cultural, de Glauber Rocha a
Lina Bo Bardi, de Othon Bastos a Jurema Penna, impulsionando um excepcional
ambiente artístico. Irreverente, TORQUATO NETO foi expulso da escola de padres,
mudando-se para o Rio de Janeiro em 1963, acatando o desbunde existencial em
plena efervescência dos festivais de música. Admirando Carlos Drummond de Andrade e Nelson
Rodrigues, costumava segui-los nas ruas, sem se deixar perceber, num prazeroso
ritual secreto. Na mesa de um bar, o botequim “Mau Cheiro”, no Arpoador,
conheceu sua futura mulher, Ana, uma garota inteligente e de personalidade
forte com quem viveria cinco anos, mas sem desprezar outras experiências
sexuais. Ao lado de amigos como Jards Macalé,
viveu uma “vagabundagem inspirada”. A festa acabou com o regime militar de 1964.
A partir dali, a felicidade passou a estar, sempre, ligada à angústia. “Sou um
homem triste”, ele escreveu em carta a um amigo, “sinto que sou um homem
destinado à latrina”. Trabalhou em jornais, gravadoras, agências de publicidade
e até no Aeroporto Santos Dumont. Fez parte do corpo de redatores da revista “Cláudia”,
“Jornal do Brasil” e “Estado de São Paulo”.
Escreveu
o roteiro de três shows de sucesso: “Pois É”, “Maria Bethânia” e “Ensaio
Geral”. Participou de performances, produziu espetáculos multimídia, roteirizou
com o poeta-compositor José Carlos Capinam o programa de tevê “Vida, Paixão e
Banana do Tropicalismo”. Escreveu a coluna “Pulg”, sobre cinema, no “Correio da
Manhã”; outra de música popular no suplemento “O Sol”, do “Jornal dos Sports”,
e no auge do tropicalismo, em 1967, publicou “Tropicalismo para Principiantes”,
convidando a “viver a tropicalidade e o novo universo que ela encerra”. A TROPICÁLIA renovou a música popular
brasileira, num reinado com conceitos hippies, encontros nas “Dunas do Barato”
em Ipanema, Arembepe, garotas de minissaia, rapazes
cabeludos, erva e ácido. O designer Rogério Duarte nomeou o espírito dessa
época como “Apocalipopótese”. Nessa doideira, TORQUATO NETO passava as noites
em claro, andando com um caderno cheio de poemas que um dia seria
um livro e vestido de maneira tradicional, transformando-se numa
figura pitoresca.
Uma
de suas manias, copiar frases de para-choque de caminhão. “Não me siga que não
sou novela”, por exemplo. Contraditório, freguês de cachaça e tira-gosto
gorduroso nos botecos suburbanos e de LSD e champanhe em sofisticadas festanças,
travestiu-se jocosamente para o filme “Helô e Dirce”, de Luiz Otávio Pimentel,
filmando na Cinelândia e no local de pegação Cine-Hora, mas no dia seguinte
mergulhou na fossa, dilacerado pela culpa, como sempre acontecia ao libertar a
bissexualidade. De 1968, no álbum “Tropicália ou Panis et Circensis” se
encontra a famosa canção “Geleia Geral”, com letra-manifesto de TORQUATO NETO. O título teve origem numa expressão pregada por Décio
Pignatari, um trocadilho com “Geleia Real”.
A polêmica
coluna de TORQUATO NETO, com o mesmo título da canção, era um espaço
crítico-criativo-poético publicado no jornal “Última Hora”, de agosto de 1971 e
março de 1972. De linguagem agressiva e descrente de qualquer função didática,
chegou a se dirigir aos leitores com um “Alô, alô idiotas”. Nela, defendia as
manifestações artísticas de vanguarda, divulgava o universo pop internacional e
a cena underground brasileira. Militante ferrenho da implantação da
contracultura no Brasil, o poeta aproveitou o espaço para abrir fogo contra o
Cinema Novo, questionando o comprometimento político dele ao acusá-lo de lacaio
de cargos e verbas oficiais, e atacando incansavelmente o debochado “Pasquim”.
Certa vez, ao encontrar Jaguar, um dos humoristas do periódico, arrancou-lhe os
óculos, pisou-os e disse: “Um cego não precisa de óculos”. Como editor, ele
fundou o alternativo “Presença” e pouco antes de morrer, junto com Waly
Salomão, projetou NAVILOUCA. O destemido
Waly radiografou o colega como “Astro doido a sonhar. O nosso moço das ânsias.
Pobre? Fauve! Fauve? Fraco herói underground. Fraco? Forte herói underground.
Leão alado sem juba”.
A
erudição, lirismo e originalidade poética de TORQUATO NETO deram uma poderosa
contribuição ao Tropicalismo. Tímido, desajeitado, revoltado com o mundo,
ferino, emocionalmente abalado e criador em crise, exigiu demais de todos,
desejando “muito além do que já houvera feito”. Terminou por se internar no
hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, e em clínicas
especializadas para superar o alcoolismo, num total de nove internações por
livre e espontânea vontade. “Para se desintoxicar e dar um tempo”, dizia. Sua
dor era visível. “Torquato apareceu um dia depois de uma internação em um
sanatório com o cabelo completamente tosado, um skin head avant-la-lettre, e eu sofri uma premonição terrível e
insuportável de uma ovelha negra tosada se oferecendo ao cutelo do matadouro”,
lembra Waly.
Em
1968 viajou pela Europa
com o artista plástico Hélio Oiticica, morando algum tempo em Londres. Vivia-se
a época da caça às bruxas ao inconformismo político. o regime militar não alisou e os tropicalistas foram considerados como
elementos nocivos e subversivos, perigosos para a segurança nacional. Calado,
deprimido, recolhido e magoado com a desastrosa viagem a Londres e o rompimento
com os baianos no duro exílio, abateu-se ainda mais com as mortes súbitas de
Jimi Hendrix (que ele teria conhecido) e Janis Joplin. Ainda assim, incentivou
a originalidade do emergente Cinema Marginal e de seus ícones Júlio Bressane,
Ivan Cardoso e Rogério Sganzerla. Num super-8 de Ivan Cardoso, “Nosferatu no
Brasil”, fez o papel-título, numa brincadeira com seu apelido,
atuando com Scarlet Moon de Chavelier. “Ele tinha identificação
com os vampiros, não gostava de claridade e era elegante como um conde da
nobreza”, justificou, mais tarde, o cineasta. De
volta a Terezina, em 1971, filmou sob a direção de Carlos Galvão, “Adão e Eva
no Paraíso de Consumo”. No mesma época, compôs aberturas e trilhas sonoras de
telenovelas como “Minha Doce Namorada” e “O Homem que deve Morrer”.
Terminou brigando com a Globo e com o Conselho Nacional de Direitos Autorais. Seu
amigo Ivan Cardoso dirigiu o documentário “Torquato Neto, o Anjo Torto da
Tropicália”.
Haroldo
de Campos traduziu TORQUATO NETO: “Verlaine escreveu sobre os poetas malditos –
que eram aqueles simbolistas rejeitados pela sociedade. E o Torquato tem muito
desse aspecto”. Outro poeta, Chacal, num verão de 1972 na Bahia, encontrou
“Torquato de olhos e boca vermelhos, cabelos em chamas pela Avenida Sete. Essa
foi a imagem que me ficou na cabeça, Torquato pela Sete, vertiginoso, volátil,
dando pérolas aos porcos, em sua geleia geral lisérgica”. Em 1988, a banda
Titãs resgatou para o pop contemporâneo o poema “Go Back”, musicado por Sérgio
Britto. Autor de algumas das mais bonitas letras da
nossa música popular, bardo alucinado, vértice tropicalista e um dos nomes mais
influentes do panorama cultural de sua época, o nordestino que desatinava e
desafinava o coro dos contentes, não segurando a barra dos anos de chumbo, escreveu:
“É preciso não beber mais. Não é preciso não sentir vontade de beber e não
beber: é preciso não sentir vontade de beber. É preciso não dar de comer aos
urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública”. Não conseguiu
parar de beber a agonia do mundo.
TORQUATO
NETO pôs em curso a poética da resistência cultural. Sua linguagem blasfema e
antropofágica faz repensar o Brasil. O terrível é que morreu com asco de sua
razão de ser: a literatura. Havia encerrado a possibilidade poética, perdera a
fé nas palavras. Pouco antes do suicídio, distribuiu sua vasta coleção de
literatura de cordel, queimou a maioria de seus escritos e quebrou a máquina de
escrever, dizendo que nunca mais voltaria a usá-la. E assim aconteceu, vencido
pelo desejo de desaparecer da face da Terra.
TORQUATO NETO
LET’S PLAY THAT
quando eu nasci
um anjo louco
muito louco
veio ler a
minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that
Até o fim
MARGINÁLIA II
eu brasileiro confesso
minha culpa meu pecado
meu sonho desesperado
meu bem guardado segredo
minha aflição
eu brasileiro confesso
minha culpa meu degredo
pão seco de cada dia
tropical melancolia
negra solidão
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
aqui o terceiro mundo
pede a benção e vai dormir
entre cascatas palmeiras
araçás e bananeiras
ao canto da juriti
aqui meu pano de glória
aqui meu laço e cadeia
conheço na lua cheia
e termina antes do fim
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
minha terra tem palmeiras
onde sopra o vento forte
da fome com medo muito
principalmente da morte
a bomba explode lá fora
agora o que vou temer
oh yes nos temos banana
até pra dar e vender
o lê lê lá lá
aqui é o fim do mundo
aqui é o fim do mundo
SOBRE TORQUATO
“Os
Últimos Dias de Paupéria” (1973)
de Torquato Neto
“Geração
em Transe: Memórias do Tempo do Tropicalismo” (1996)
de Luiz Carlos Maciel
“Tropicália
– A História de uma Revolução Musical” (1997)
de Carlos Calado
“Pra
Mim Chega!” (2005)
de Toninho Vaz
21 comentários:
Excelente crônica, Naud.
Tenho este livro de Torquato e me identifico bastante com sua proposta contracultural.
Pena que seres como ele e Waly não pertençam mais a este Planeta.
A inquietação cultural é necessária neste mundo atual de medíocres em geral.
Abração.
Ricardo Mainieri
Antonio Naud
Somente hoje li seu escrito sobre Torquato.
Convivemos como internos nos Maristas de Salvador no inicio dos anos 60.Eu no ginásio,êle já cursando o científico.Dele me ficaram as impressões : esquisito ,cegonhento (como chamaram tb Sosígenes Costa),excelente pianista (ganhou vários concursos musicais),excêntrico.Usava contantemente uma boina ( vide capa do LP Tropicália).
Não canso de ouvir PRA DIZER ADEUS ( letra dele e música de Edu Lobo)para mim uma das composições eternas da MPB na interpretação ,sem adjetivos,de Elis Regina. Emilio Suzart
Cinzas e Diamantes já é leitura obrigatória!
Valeu Antonio Nahud!
MUITO LEGAL!
Torquato, o mais tropicalista dos tropicalistas. Os versos crus, simples e belos revelavam um encanto ao mesmo tempo pueril, singelo, abrasador e explosivo. Simultaneamente tb, Torquato vivia profunda e intensamente todos os antagonismos de si em si e as multi-contradições da vida.
Que bom ver uma publicação dessas não vindo de um Piauiense... E ver nos comentários a importância de sua obra, não só para seus conterrâneos como eu, de sua contribuição tanto para poesia brasileira, mas principalmente para o mais marcante movimento cultural do País... O tropicalismo.
Beleza
Nahud, você é o sonho de qualquer editor.
Como me seduzem os que são "loucos" transtornados de paixão ! ! !
Conheci parentes e amigos dele em Teresina/Pi. Ele era o cara.
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
Adoro ele cajuína q Caetano fez em sua hhomenagem
Caio F. adorava Torquato, sempre o citava: " Sei que adiante, um dia vou morrer de susto, de bala ou vício no precipício de luzes entre saudade, soluços... eu vou morrer de bruços eu vou morrer nos braços de uma mulher..." gênio! (Letra de Soy Loco por ti America)
Parabéns!!! Nahud, tu és show!! Te admiro d+!!!! Sonho em um dia te conhecer... será que um dia tu vens a Passo Fundo??? Sucesso e obrigada pelos teus textos... sempre nos ajudam em todos os aspectos de nossas vidas! Bjão!
Escrever é prazer,um parto da alma e os frutos,uma dádiva para todos. Abraços, sensível e belo amigo.,fico feliz em curtir suas postagens.Parabéns e ainda mais sucesso te desejo e espero.
Estranho, um comentário de anônimo dizendo que Torquato era pianista. Tom Zé mesmo afirma que Torquato não sabia tocar nenhum instrumento. Já li diversos textos sobre o poeta, inclusive biografias e nenhuma delas diz algo sobre ele tocar qualquer instrumento. Será um equívoco? Ass. Esmeralda.
Antonio Nahud, adorei. Excelente postagem referendando de fora magistral o movimento que nasceu baiano e ganhou o país. e o Torquato no cacoete do movimento, nos traz versos universais com cheiro de brasilidade. Grato Nahud!!!!!
Devidamente arquivado.
Muitos artistas talentosos fizeram a passagem ainda muito jovens. Lamentável. Ele Elvis, Jessé...
Doce e denso como a cajuína.
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