fevereiro 13, 2016

................................................ HOUVE uma VEZ um “VERÃO da LATA”



Ilustrações: 
ANTONIO GUERRERO

O documentário “Verão da Lata” (2014), dirigido por Tocha Alves e Haná Vaisman, recordou-me um extraordinário momento de minha juventude. Eu costumava passar o verão inteiro num mesmo lugar, desde que marítimo e precioso. No famoso VERÃO DA LATA (1987-88), acampei em Olivença, sul de Ilhéus, acompanhado por uma dezena de amigos em três grandes barracas, entre muitas outras de jovens das cidades das redondezas. Um acampamento improvisado, alternativo, amigável, solidário. Gente novinha, sem dinheiro, sendo feliz em um dos mais belos pontos do litoral ilheense. Um paraíso praticamente desabitado (logo construíram um pavoroso condomínio residencial).

Não havia água doce ou energia elétrica. À beira-mar, contemplado por rochas, coqueiros e árvores úmidas, retorcidas e sombrias, de porte médio - nunca soube o nome delas. Ainda não tinham inventado o celular nem as redes sociais. Máquinas fotográficas eram raras nas mãos de adolescentes. A boa das férias era passar horas em volta da fogueira, falando sobre amores inventados ou extraterrestres, flertando, cantando ao som de violão, bebendo um coquetel de vodca com frutas, vendo as estrelas. Noites que se repetiam arrastadas, dengosas, elétricas. O único inconveniente eram as muriçocas, que atacavam impiedosas. Quando um ou outro amigo sumia na calada da noite, o buchicho brincalhão era fatal, assim como as risadinhas inocentes de gozo.

Numa desses noites lúdicas, alguém contou para o grupo sobre o inesperado carregamento de latas de maconha despejado no litoral brasileiro, espalhando-se por praias cariocas e paulistas.  Inclusive, leu um pequeno recorte de jornal sob a luz de um isqueiro. Não lembro do informante, certamente um estranho de passagem. A informação gerou polêmica. Nossa galera não usava drogas, mas tinha conceito libertário, não se incomodava com consumidores, muito pelo contrário. A história correu de boca em boca. Poucos acreditaram nela, diziam que era folclore, uma incrível fábula “viajante” de usuário de maconha.

Semanas mais adiante, no primeira quinzena de janeiro de 1988, um príncipe carioca se instalou com sua minúscula barraca azul turquesa, próximo à nossa. Sozinho, cabelos longos ao vento, belo, sobrenome Buarque de Holanda (isso, parente de Chico). Olhos entre o verde e o azul, de grandes gatos do mato, olhos glaucos, iluminados. Nos tornamos inseparáveis. “Baby” tocava flauta, cantava, surfava, lia poemas de Pablo Neruda e quase sempre estava lombrado pelos sortilégios da cannabis. No nosso segundo encontro, sério e me analisando, contou que encontrara três latas de maconha em Ubatuba, na Praia Grande, vendeu duas por 500 dólares cada, e com a grana inesperada resolveu passar uns meses viajando sem destino pelo Nordeste, enquanto consumia o “presente divino” da terceira lata.

Apresentou-me à dita cuja: uma lata metálica, sem rótulo. Abriu para eu ver o que tinha dentro. O conteúdo era altamente prensado. No meio do material, alguns pedacinhos de jornal escritos em letras estranhas indicavam a procedência oriental da carga. Exigiu segredo. Confiava que eu não contaria a ninguém. E assim aconteceu. Os tempos eram duros, ainda flagelados pelo fastasma da ditadura. Depois do carnaval, separamos-nos, ele tinha de seguir seu caminho adiado por semanas e eu voltar aos estudos e à família tradicional. Choramos, “Baby”. A felicidade não aceitava a separação. Grudados ao sol ardente, tomados pelas lágrimas, ônibus buzinando, ficamos de nos encontrar mais adiante, nas férias juninas. Isso nunca aconteceu. Não tivemos a chance de um segundo encontro. Nos anos 2000, casualmente, vi o seu retrato na coluna de Joyce Pascowitch, ao lado de uma bonita esposa e um filhote no colo. Olhei detalhadamente o seu rosto durante uns dez minutos. Não era o mesmo. O nosso afeto havia se perdido para o nunca mais.


Desde que ele partiu, passei a defender com unhas e dentes a veracidade da história DA LATA, embora soubesse poucos detalhes concretos. Pedi informações ao meu pai, um advogado leitor diário de vários jornais, e ele se irritou, disse-me que não era assunto para garotos decentes. Deixei pra lá. Os anos passaram e terminei por esquecer “Baby” e o VERÃO DA LATA. Em 2014, ganhei o livro “O Verão da Lata: Um Verão que Ninguém Esqueceu, do jornalista Wilson Aquino. Assustei-me, resgatando subitamente a história amorosa perdida no jardim da memória. “Baby” outra vez avalanche no coração. Procurei identificar amigos antigos, seria bom conversar, esclarecer detalhes, mas todos estavam distantes, mortos, inacessíveis. Pesquisei sobre o assunto, por fim chegando ao documentário “Verão da Lata”, exibido no canal History.

O histórico VERÃO DA LATA ocorreu no Brasil entre 1987 e 1988. Fato emblemático, marcou uma geração, e ganhou repercussão na mídia, em livros, música e documentário. Popularizou-se no imaginário popular durante alguns anos. Todo mundo conhecia alguém (ou terminaria por conhecer) que havia encontrado uma das 15 mil latas de maconha que flutuaram nas praias brasileiras. A fama delas foi eternizada com a música “Veneno da Lata”, de Fernanda Abreu, em 1996. Até correu um boato que um famoso diretor de uma emissora de TV teria acumulado 600 latas em sua casa em Angra dos Reis e que teria comprado vários freezers para estocar o material.

Em 19 de setembro de 1987, na cidade do Guarujá, no litoral paulista, foram encontradas as primeiras seis latas com maconha. Após serem apreendidas pela polícia, o caso começou a ganhar destaque nas páginas policiais e, principalmente, na boca do povo. O episódio insólito começou quando o Solana Star,  de bandeira panamenha, partiu de Singapura, no sudeste asiático, rumo aos Estados Unidos, com 22 toneladas de maconha. O objetivo era chegar ao litoral norte do Rio de Janeiro, distribuir a mercadoria entre outros dois barcos e seguir para os Estados Unidos. A grande surpresa era como a droga estava escondida: em latas de 1,5 kg cada, recheadas com maconha conservada em mel. Latas fechadas a vácuo, que era uma coisa recente, misturadas a latas de suco de tomate, como se fosse um único carregamento. Os planos foram frustrados quando o chefe do grupo foi preso em Nova Iorque. O governo norte-americano avisou o Brasil da chegada do barco cheio da droga, mas os traficantes souberam de antemão que o negócio tinha vazado.

No encalço dos bandidos, a Marinha brasileira disponibilizou a fragata Independência, a sua mais moderna embarcação marítima de guerra. Fizeram baitas operações, e não encontraram o Solana Star e seus sete tripulantes – cinco norte-americanos, um haitiano e um costarriquenho. Avistando um contratorpedeiro brasileiro e com receio de serem presos, os traficantes internacionais jogaram toda a carga no mar a umas 100 milhas da costa. Cerca de 15 mil latas, com maconha comprimida. As latas boiaram, e começaram a aparecer uma a uma, primeiro no litoral fluminense, depois no paulista, até chegar à praia do Cassino, no extremo do Rio Grande do Sul. Durante várias semanas, latas foram lançadas nas praias brasileiras. As embalagens recheadas com cannabis de excelente qualidade, causaram uma corrida à lata entre usuários, mercenários e autoridades.

Antes de ganhar maciçamente o noticiário, os falatórios sobre as latas de maconha eram tratados com descrédito. Mas o assunto era real e se espalhou rapidamente, virou caso de polícia, originou uma busca pela novidade verde enlatada. No auge da caça às latas, a Polícia Federal paralisou todos os outros casos e focou apenas naquela investigação. Sem conseguir prender a tripulação, fez uma rigorosa operação para recuperar as latas. Também coibiu a atuação de traficantes de oportunidade. Algumas pessoas achavam as latas e depois vendiam seu conteúdo, como o meu amigo “Baby”. Encontradas pela polícia, pegavam até seis anos de prisão. Por outro lado, traficantes anunciavam vender a maconha da lata, oferecendo a droga de sempre enlatada.

A ação conjunta das Polícias Militar, Federal e até Marinha apreendeu apenas 3.292 latas, das 15 mil que foram despejadas no oceano. A maioria delas foi recuperada por banhistas que as encontravam boiando no mar. Se o produto chegasse ao destino final teria rendido cerca de US$ 90 milhões (R$ 351 milhões) aos traficantes. Foi um tempo em que surfistas iam ao mar procurando um brilho que denunciasse as latas. Outros alugavam barcos e iam longe da costa ou a ilhas costeiras para achá-las. Com a fama que o assunto ganhou no Brasil, abrir a lata se transformou em ritual, e, numa “homenagem” informal criou-se a gíria “da lata” para se referir a algo quando é de qualidade. Fala-se: “essa comida tá da lata”, ou “refrigerante da lata”, essas coisas. Ainda hoje a expressão é sinônimo de algo excepcional. O comediante Jô Soares, em uma crônica na revista Veja, disse que 1987 não será lembrado por nenhum acontecimento político, econômico ou esportivo, será lembrado como o ano da “lata”. Tem toda razão.


Finalizando a história: após o descarte da mercadoria, o barco ficou atracado vários dias na Baía da Guanabara antes da polícia descobrir seu paradeiro. Os traficantes passaram sorrateiramente pela alfândega sob a alegação de motor quebrado e hospedaram-se em Copacabana. Dos sete tripulantes, seis escaparam pelo aeroporto do Galeão. Restou um que se declarou cozinheiro. Identificado como Stephen Skelton, ele deveria ter saído do país junto com os comparsas, mas se apaixonou por uma brasileira e resolveu ficar. Detido pelas autoridades, condenado a 20 anos de prisão, cumpriu apenas um ano e foi extraditado. Com a conclusão do caso, o barco permaneceu apreendido até ser leiloado. Seu nome foi alterado mais duas vezes, passando de Solana Star para Charles Henri e, por último, Tunamar. Teve um final trágico, naufragando em outubro de 1994, matando 11 tripulantes.















7 comentários:

Otaviano Marins disse...

Tô besta! Meu tio me contou essa história certa vez. Disse ter encontrado uma lata. Como era meio fora do ar não dei crédito. Pena que ele já morreu, perdendo o filme, livros e o seu ótimo post.

Reynaldo Brito disse...

Belíssima narrativa. Daria um filme de primeira. Valeu.

Ailton Souza disse...

Tive um amigo que falava dessa história da lata. Nunca acreditei. Quem diria.

Martino disse...

Desconhecia essa história. Que louca!

Pedro Casimiro disse...

Fiquei louco para ver o documentário!

Luiz Barbosa disse...

beleza

Paulo Sérgio Alcantara Brito disse...

Eu assisti este documentário. Muito legal.