Ilustrações:
ANTONIO GUERRERO
O documentário “Verão da Lata” (2014), dirigido por Tocha Alves e Haná Vaisman, recordou-me um extraordinário momento de minha juventude. Eu costumava passar o verão inteiro num mesmo lugar, desde que marítimo e precioso. No famoso VERÃO DA LATA (1987-88), acampei em Olivença, sul de Ilhéus, acompanhado por uma dezena de amigos em três grandes barracas, entre muitas outras de jovens das cidades das redondezas. Um acampamento improvisado, alternativo, amigável, solidário. Gente novinha, sem dinheiro, sendo feliz em um dos mais belos pontos do litoral ilheense. Um paraíso praticamente desabitado (logo construíram um pavoroso condomínio residencial).
ANTONIO GUERRERO
O documentário “Verão da Lata” (2014), dirigido por Tocha Alves e Haná Vaisman, recordou-me um extraordinário momento de minha juventude. Eu costumava passar o verão inteiro num mesmo lugar, desde que marítimo e precioso. No famoso VERÃO DA LATA (1987-88), acampei em Olivença, sul de Ilhéus, acompanhado por uma dezena de amigos em três grandes barracas, entre muitas outras de jovens das cidades das redondezas. Um acampamento improvisado, alternativo, amigável, solidário. Gente novinha, sem dinheiro, sendo feliz em um dos mais belos pontos do litoral ilheense. Um paraíso praticamente desabitado (logo construíram um pavoroso condomínio residencial).
Não havia água doce ou energia elétrica. À beira-mar, contemplado por rochas, coqueiros e árvores úmidas, retorcidas e sombrias, de porte médio - nunca soube o nome delas. Ainda não tinham inventado o
celular nem as redes sociais. Máquinas fotográficas eram raras nas mãos de
adolescentes. A boa das férias era passar horas em volta da fogueira, falando sobre amores inventados ou extraterrestres, flertando, cantando ao som de violão, bebendo um coquetel
de vodca com frutas, vendo as estrelas. Noites que se repetiam arrastadas, dengosas, elétricas. O único inconveniente eram as muriçocas, que atacavam impiedosas. Quando
um ou outro amigo sumia na calada da noite, o buchicho brincalhão era fatal, assim
como as risadinhas inocentes de gozo.
Numa desses noites lúdicas, alguém
contou para o grupo sobre o inesperado
carregamento de latas de maconha despejado no litoral brasileiro, espalhando-se
por praias cariocas e paulistas. Inclusive,
leu um pequeno recorte de jornal sob a luz de um isqueiro. Não lembro do
informante, certamente um estranho de passagem. A informação gerou polêmica.
Nossa galera não usava drogas, mas tinha conceito libertário, não se incomodava
com consumidores, muito pelo contrário. A história correu de boca em boca.
Poucos acreditaram nela, diziam que era folclore, uma incrível fábula “viajante”
de usuário de maconha.
Semanas mais adiante, no primeira quinzena de
janeiro de 1988, um príncipe carioca se instalou com sua minúscula barraca azul
turquesa, próximo à nossa. Sozinho, cabelos longos ao vento, belo, sobrenome Buarque de Holanda (isso, parente de Chico). Olhos entre o verde e o azul, de grandes gatos do mato, olhos glaucos, iluminados. Nos tornamos inseparáveis. “Baby” tocava flauta, cantava, surfava, lia
poemas de Pablo Neruda e quase sempre estava lombrado pelos sortilégios da cannabis. No nosso segundo encontro, sério e me analisando, contou que encontrara três latas de maconha em Ubatuba, na Praia Grande, vendeu duas
por 500 dólares cada, e com a grana inesperada resolveu passar uns meses viajando sem
destino pelo Nordeste, enquanto consumia o “presente divino” da terceira lata.
Apresentou-me à dita cuja: uma lata metálica, sem rótulo. Abriu para eu ver o que tinha dentro. O conteúdo era
altamente prensado. No meio do material, alguns pedacinhos de jornal escritos
em letras estranhas indicavam a procedência oriental da carga. Exigiu segredo. Confiava
que eu não contaria a ninguém. E assim aconteceu. Os tempos eram duros, ainda flagelados
pelo fastasma da ditadura. Depois do carnaval, separamos-nos,
ele tinha de seguir seu caminho adiado por semanas e eu voltar aos estudos e à
família tradicional. Choramos, “Baby”. A felicidade não aceitava a separação. Grudados ao sol ardente, tomados pelas lágrimas, ônibus buzinando, ficamos de
nos encontrar mais adiante, nas férias juninas. Isso nunca aconteceu. Não tivemos a chance de um segundo encontro. Nos anos 2000, casualmente, vi o seu retrato na coluna de Joyce Pascowitch, ao lado de uma bonita esposa e um filhote no
colo. Olhei detalhadamente o seu rosto durante uns dez minutos. Não era o
mesmo. O nosso afeto havia se perdido para o nunca mais.
Desde que ele partiu, passei a defender com unhas e
dentes a veracidade da história DA LATA, embora soubesse poucos detalhes
concretos. Pedi informações ao meu pai, um advogado leitor diário de vários
jornais, e ele se irritou, disse-me que não era assunto para garotos decentes. Deixei
pra lá. Os anos passaram e terminei por esquecer “Baby” e o VERÃO DA LATA. Em 2014, ganhei o livro “O Verão da Lata: Um Verão que
Ninguém Esqueceu”, do jornalista Wilson Aquino. Assustei-me, resgatando subitamente
a história amorosa perdida no jardim da memória. “Baby” outra vez avalanche no coração.
Procurei identificar amigos antigos, seria bom conversar, esclarecer detalhes, mas todos estavam distantes,
mortos, inacessíveis. Pesquisei sobre o assunto, por fim chegando ao documentário “Verão da Lata”, exibido
no canal History.
O histórico VERÃO DA LATA ocorreu
no Brasil entre 1987 e 1988. Fato emblemático, marcou uma geração, e ganhou repercussão
na mídia, em livros, música e documentário. Popularizou-se no imaginário
popular durante alguns anos. Todo mundo conhecia alguém (ou terminaria por
conhecer) que havia encontrado uma das 15 mil latas de maconha que flutuaram
nas praias brasileiras. A fama delas foi eternizada com a música “Veneno da
Lata”, de Fernanda Abreu, em 1996. Até correu um boato que um famoso diretor de
uma emissora de TV teria acumulado 600 latas em sua casa em Angra dos Reis e
que teria comprado vários freezers para estocar o material.
Em 19 de setembro de 1987, na cidade do Guarujá, no litoral paulista, foram encontradas as primeiras seis latas
com maconha. Após serem apreendidas
pela polícia, o caso começou a ganhar destaque nas
páginas policiais e, principalmente, na boca do povo. O episódio insólito começou
quando o Solana Star, de bandeira panamenha,
partiu de Singapura, no sudeste asiático, rumo aos Estados Unidos, com 22
toneladas de maconha. O objetivo era chegar ao litoral norte do Rio de Janeiro,
distribuir a mercadoria entre outros dois barcos e seguir para os Estados
Unidos. A grande surpresa era como a droga estava escondida: em latas de
1,5 kg cada, recheadas com maconha conservada em mel. Latas fechadas a vácuo, que era uma coisa recente, misturadas a latas de suco de tomate, como se fosse um único carregamento. Os planos
foram frustrados quando o chefe do grupo foi preso em Nova Iorque. O governo
norte-americano avisou o Brasil da chegada do barco cheio da droga, mas os
traficantes souberam de antemão que o negócio tinha vazado.
No encalço dos bandidos, a
Marinha brasileira disponibilizou a fragata Independência, a sua mais moderna
embarcação marítima de guerra. Fizeram baitas operações, e não encontraram
o Solana Star e seus sete tripulantes – cinco norte-americanos, um haitiano e
um costarriquenho. Avistando um contratorpedeiro brasileiro e com receio de serem
presos, os traficantes internacionais jogaram toda a carga no mar a umas 100
milhas da costa. Cerca de 15 mil latas, com maconha comprimida. As latas
boiaram, e começaram a aparecer uma a uma, primeiro no litoral fluminense,
depois no paulista, até chegar à praia do Cassino, no extremo do Rio Grande do
Sul. Durante várias semanas, latas foram lançadas nas praias brasileiras. As embalagens recheadas com cannabis de excelente qualidade, causaram
uma corrida à lata entre usuários, mercenários e autoridades.
Antes de ganhar maciçamente o
noticiário, os falatórios sobre as latas de maconha eram tratados com descrédito.
Mas o assunto era real e se espalhou rapidamente, virou caso de polícia,
originou uma busca pela novidade verde enlatada. No auge da caça às latas, a
Polícia Federal paralisou todos os outros casos e focou apenas naquela
investigação. Sem conseguir prender a tripulação, fez uma rigorosa operação para
recuperar as latas. Também coibiu a atuação de traficantes de oportunidade.
Algumas pessoas achavam as latas e depois vendiam seu conteúdo, como o meu amigo “Baby”. Encontradas pela
polícia, pegavam até seis anos de prisão. Por outro lado, traficantes anunciavam
vender a maconha da lata, oferecendo a droga de sempre enlatada.
A ação conjunta das Polícias
Militar, Federal e até Marinha apreendeu apenas 3.292 latas, das 15 mil que
foram despejadas no oceano. A maioria delas foi recuperada por banhistas que
as encontravam boiando no mar. Se
o produto chegasse ao destino final teria rendido cerca de US$ 90 milhões (R$ 351
milhões) aos traficantes. Foi um tempo em que surfistas iam ao mar procurando
um brilho que denunciasse as latas. Outros alugavam barcos e iam longe da costa
ou a ilhas costeiras para achá-las. Com a fama que o assunto ganhou no Brasil, abrir
a lata se transformou em ritual, e, numa “homenagem” informal criou-se a gíria
“da lata” para se referir a algo quando é de qualidade. Fala-se: “essa comida
tá da lata”, ou “refrigerante da lata”, essas coisas. Ainda hoje a expressão é sinônimo de algo excepcional. O
comediante Jô Soares, em uma crônica na revista Veja, disse que 1987
não será lembrado por nenhum acontecimento político, econômico ou esportivo, será lembrado como o ano da “lata”. Tem toda razão.
Finalizando a história: após o
descarte da mercadoria, o barco ficou atracado vários dias na Baía da Guanabara
antes da polícia descobrir seu paradeiro. Os traficantes passaram sorrateiramente pela alfândega sob a alegação de motor quebrado e
hospedaram-se em Copacabana. Dos sete tripulantes, seis escaparam pelo
aeroporto do Galeão. Restou um que se
declarou cozinheiro. Identificado como Stephen Skelton, ele deveria ter saído
do país junto com os comparsas, mas se apaixonou por uma brasileira e resolveu
ficar. Detido pelas autoridades, condenado a 20 anos de prisão, cumpriu apenas
um ano e foi extraditado. Com a conclusão do
caso, o barco permaneceu apreendido até ser leiloado. Seu nome foi alterado
mais duas vezes, passando de Solana Star para Charles Henri e, por último,
Tunamar. Teve um final trágico, naufragando em outubro de
1994, matando 11 tripulantes.
7 comentários:
Tô besta! Meu tio me contou essa história certa vez. Disse ter encontrado uma lata. Como era meio fora do ar não dei crédito. Pena que ele já morreu, perdendo o filme, livros e o seu ótimo post.
Belíssima narrativa. Daria um filme de primeira. Valeu.
Tive um amigo que falava dessa história da lata. Nunca acreditei. Quem diria.
Desconhecia essa história. Que louca!
Fiquei louco para ver o documentário!
beleza
Eu assisti este documentário. Muito legal.
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