A poesia é um ato de paz.
A paz entra dentro da composição
de um
poeta tal como a farinha
entra na composição do pão.
PABLO NERUDA
(1904 - 1973. Parral / Chile)
Ilustrações:
SUZANNE VALADON
(1865 - 1938. Bessines-sur-Gartempe / França)
Entrevistei NEUZAMARIA KERNER
para o jornal literário
“ABXZ - Caminho das Letras”
Itabuna, Bahia, 2007
“A POESIA é a FOTOGRAFIA da MINHA EXISTÊNCIA”

Seus versos delicados cantam a natureza, os
sentimentos próprios da alma humana, as belezas e as agruras da nação grapiúna.
Foram celebrados por Affonso Romano de Sant’Anna. Morando em Vitória (ES) e com
livro pronto para ser lançado, “Eva: Dentro e Fora do Jardim”, a poeta
passou alguns dias no Sul da Bahia. Aproveitei para entrevistá-la. Um papo inesquecível. Confira.
Como foi que abraçou a literatura?
Nasci com a arte pulsando como o meu coração. A descoberta não
acontece de um momento para o outro, assim, num estalo. Desde que tive
consciência de mim, como ser vivente neste mundo, tinha a sensação de que meus
olhos haviam sido preparados para ver alguma coisa diferente que nem todos
viam, pelo menos os da minha idade. Engraçado é lembrar que os adultos com os
quais convivi na infância e adolescência me achavam estranha e eu nem sabia o
que era ser estranha. Hoje eu acho que eles é que eram estranhos. Era algo
incomodativo olhar pro outro e não senti-lo pensando, observando o que brotava
à nossa volta. Eu lia muito, por isso pensava... e pensar diferente da sua
tribo gera uma certa angústia, uma sensação de não pertencimento àquele
lugar... interessante é que eu era amada e bem acolhida.
Alguém escrevia na sua família? Havia incentivo literário em casa?
Somente algumas cartas raras a parentes distantes. No entanto meu
pai era um autodidata, lia pra caramba. Mas não era aquele leitor sisudo,
antipático... ele gostava de literatura de cordel e o cordel, mesmo sendo
engraçado, fala de coisas muito sérias. Eu continuo apaixonada pela peleja do
Cego Aderaldo e o Zé Pretinho! Ele me levava sempre pra ver os repentistas e
violeiros na Praça Cairu, no Terreiro de Jesus e na Praça da Sé, em Salvador. Havia
também as poesias de Castro Alves que ele me ensinava a declamar. Nossa! Que
lembrança boa foi conhecer os versos de Omar Khayyam, aquele da Pérsia, quando
eu só tinha 11 anos de idade. Bom, talvez isso tenha sido o meu incentivo, fora
as histórias de Sherazade, as histórias de assombração, a inventividade do
povo. Entrei naquele universo e não saí mais.
Como despertou para o imaginário poético?
Pois é, amado, acho que um dia dormi e quando despertei estava
dentro desse universo que descrevi na pergunta anterior. É bom permanecer dentro
dele... a gente fica meio que protegido. Acho que é por isso que sempre
arrisquei registrar o que pensava, do jeito que fosse.
E o primeiro livro? Como aconteceu o processo criativo? Tardou muitos
anos para finalizá-lo?
O primeiro livro, putz! É como a história do primeiro sutiã, o
susto da primeira menstruação... Foi um ato de coragem! Escrevi muito, rasguei
muito, toquei fogo em tudo – eu sempre fui fogosa... não gostava do que
escrevia, tocava fogo. Por causa dessa mania demorei muito a publicar, também
tinha o medo do julgamento, a questão da falta de grana. Encontrei muita gente
bacana que me ajudou, principalmente em Ilhéus e em Itabuna. Lembro do
conto “Natal na Barca”, de Lygia Fagundes Telles. Quando li o conto, chorei
tanto e saí dele me sentindo medíocre. Outra fogueira, mas a última!
Houve algum poeta que a tocou profundamente na época dos primeiros
poemas? Alguma influência?
Todos os poetas me tocaram profundamente, mas nenhum deles foi meu
ginecologista... desculpe a irreverência. Bom, houve a forma dos repentistas; a
angústia, a perplexidade, o questionamento existencial de Khayyam; os versos de
Cecília. Eu creio que quem escreve recebe influência de tudo o que lê, ouve e sente.
Nasceu em
Salvador. Nos tempos soteropolitanos tinha convivência
artística?
Sim. Só o fato de estar vivendo já é ser artista. Você conhece bem
a efervescência da cultura baiana: teatro de rua, batuques, violas... estava ligada, atenta. No entanto,
quero dizer que viver em Ilhéus foi um marco importante na minha vida como
poeta, porque aqui eu ganhei a coragem de mostrar meu texto, me expor.
E a experiência como educadora? Foi uma escolha lúcida?
Sabe, outro dia fiz uma brincadeira comigo mesma: escrevi várias
profissões num papel; aí fui me colocando nelas... não sei se não as acolhi ou
elas não me acolheram. Porém houve uma que gritava desesperadamente para mim:
olhe, eu estou aqui! Adivinhe qual a profissão? Nem precisa dizer, né? Foi,
sim, uma escolha lúcida porque nós nos escolhemos. Nunca pude imaginar o mundo
com pessoas sem saber ler. Ler no sentido pleno da palavra. É muito bom
trabalhar como professora porque, para mim, é a única profissão que possibilita
aprender enquanto ensina. É uma troca maravilhosa. Na verdade eu sou parceira
dos meus alunos.
O que pensa do vácuo entre um livro e outro? Qual o sentimento
neste espaço de tempo?
No vácuo há o caos e eu no meio dele tentando me ordenar – nunca
consigo! É quando percebo que a angústia vomitada não acabou, vem gerando
outra. Sempre parindo angústias... uma sensação de estranhamento do eu comigo,
uma luta infernal. Veja o poema “Ouvindo”, inédito – para o próximo livro. Eu estou sempre na beira de mim. Deve ser
coisa de doido! No fundo não consigo me desmelancolizar. É assim!
Conte um pouco sobre a temporada grapiúna. Envolveu-se com os escritores
locais?
Minha temporada grapiúna foi muito rica. Fazia teatro - saudade de
Pedro Matos-, cantava em coral, sempre envolvida com o povo da Casa dos
Artistas, trocava idéias com os escritores da região e do mundo... foi um
período de expansão. Conviver com você, Antonio Nahud, com Hélio Pólvora, com
Cyro de Matos, Sá Barreto, Jorge Amado, Jorge Medauar, Janete Badaró, Baísa
Nora, George Pellegrini, Valdelice Pinheiro, Maria Luiza Heine, Ramayana
Vargens, Dorival de Freitas, Francolino, Ruy Póvoas... Vou parar de falar
nomes. Foi tanta gente boa que nem cabe no maior pergaminho do mundo. Aprendi
muito!
Como traduz a literatura do sul da Bahia?
Como a voz de um povo que marca a sua presença na história da
literatura universal. Se eu fosse falar sobre esse assunto agora, viraria uma
tese.
Os seus livros tiveram a repercussão merecida?
O que é mesmo repercussão? Se o que eu escrevi e meus amigos
leram, e me cobram sempre novos livros, então digo que a repercussão foi
astronômica.
O que anda escrevendo?
Um monte de coisas... estou sempre escrevendo. Fora os projetos de
trabalho, as aulas na Estácio de Sá em Vitória pra sobreviver, estou arrumando
os poemas para o meu novo livro, “Evas: Dentro e Fora do Jardim”.
Como está sendo a vivência na Academia de Letras
de Ilhéus?
O tempo de aprender com os mestres. Pertencer a uma Academia é
como pertencer a uma tribo e muita gente pensa que é o lugar dos vaidosos, mas
não é bem assim. Olhe, amado, estar na ALI é
uma experiência indizível. Sabe aquela coisa da honra? Numa Academia de
Letras se vive o ritual da iniciação todos os dias.
O que seria de Neuzamaria Kerner sem poesia?
Uma pessoa na prisão, um passarinho sem asas, um estômago
trovoando por um prato de comida, um mundo sem cachoeiras... A poesia é o elo
entre mim e a vida. É a fotografia da minha existência. Sem ela sou o
desgarramento cósmico absoluto. Vixe, dessa vez fui longe demais!
DOIS POEMAS de NEUZAMARIA
OUVINDO...
Ouço a chegada
de quem nunca chega.
Ouço a voz de quem
comigo não fala.
Ouço o passado se afastando
e me deixando só
cada vez mais.
Eu na beira dos olhos - águo
Eu na beira da boca - engasgo
Eu na beira da terra - broto
Eu na beira do Eu...
O LADO BOM do PASSADO (1)
As cachoeiras tombavam
riam do nosso riso
zombavam dos nossos tombos
e tudo era festa.
Não se sabia o que éramos...
talvez crianças na adultidade
(n ã o i m p o r t a a g o r a).
Efervescíamos!...
Como adolescentes traquinos
éramos o que críamos
e tudo era real:
pilotos-passageiros dos instantes
onde felizes nos permanecemos
presentes na vida.
riam do nosso riso
zombavam dos nossos tombos
e tudo era festa.
Não se sabia o que éramos...
talvez crianças na adultidade
(n ã o i m p o r t a a g o r a).
Efervescíamos!...
Como adolescentes traquinos
éramos o que críamos
e tudo era real:
pilotos-passageiros dos instantes
onde felizes nos permanecemos
presentes na vida.
9 comentários:
Realmente encantador,
Amei a entrevista, achei uma pessoa simples, educada e muito a vontade
Tres jouli!
Gostei muito Antonio Nahud. Uma poetisa envolvente por sua simplicidade, dicernimento e autoconfiança. Bela e enriquecedora entrevista. Parabens!.
Belo, expressivo colorido.
Imagens belíssimas! Pintar é uma forma de fazer poesia.
Neuzamaria Kerner é top! Amo e sou fã de carteirinha.
Espetacular!
Sensibilidade ímpar!
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