setembro 23, 2018

.......................................... FRAGMENTOS de NEUZAMARIA KERNER


  
“A poesia é um ato de paz. A paz entra dentro da composição de um poeta tal como a farinha entra na composição do pão.”
PABLO NERUDA
(Parral, Chile. 1904 - 1973)

Ilustrações:
SUZANNE VALADON
(Bessines-sur-Gartempe, França. 1865 - 1938)


ANTONIO NAHUD entrevista NEUZAMARIA KERNER para o jornal literário “ABXZ - Caminho das Letras”. Itabuna, Bahia, 2007.


“A POESIA é a FOTOGRAFIA da MINHA EXISTÊNCIA”

Os anos vividos em Ilhéus marcaram a baiana NEUZAMARIA KERNER. Nas terras do sem fim, deixou-se ser seduzida pelo perfume da Mata Atlântica, conheceu escritores e lançou dois livros de poemas, “Fragmentos de Cristal” (1993) e “Eu Bebi a Lua” (1995), tornando-se imortal na Academia de Letras de Ilhéus. Fulgurante, senhora de enormes olhos verdes e simpatia contagiante, ela ensinou em vários colégios, participou de recitais, fez teatro com o lendário Pedro Mattos e teve participações importantes no PROLER e Alfabetização Solidária / UESC.

Seus versos delicados cantam a natureza, os sentimentos próprios da alma humana, as belezas e as agruras da nação grapiúna. Foram celebrados por Affonso Romano de Sant’Anna. Morando em Vitória (ES) e com livro pronto para ser lançado, “Eva: Dentro e Fora do Jardim”, a poeta passou alguns dias no Sul da Bahia. Aproveitei para entrevistá-la. Um papo inesquecível. Confira.

Como foi que abraçou a literatura?

Nasci com a arte pulsando como o meu coração. A descoberta não acontece de um momento para o outro, assim, num estalo. Desde que tive consciência de mim, como ser vivente neste mundo, tinha a sensação de que meus olhos haviam sido preparados para ver alguma coisa diferente que nem todos viam, pelo menos os da minha idade. Engraçado é lembrar que os adultos com os quais convivi na infância e adolescência me achavam estranha e eu nem sabia o que era ser estranha. Hoje eu acho que eles é que eram estranhos. Era algo incomodativo olhar pro outro e não senti-lo pensando, observando o que brotava à nossa volta. Eu lia muito, por isso pensava... e pensar diferente da sua tribo gera uma certa angústia, uma sensação de não pertencimento àquele lugar... interessante é que eu era amada e bem acolhida.


Alguém escrevia na sua família? Havia incentivo literário em casa?

Somente algumas cartas raras a parentes distantes. No entanto meu pai era um autodidata, lia pra caramba. Mas não era aquele leitor sisudo, antipático... ele gostava de literatura de cordel e o cordel, mesmo sendo engraçado, fala de coisas muito sérias. Eu continuo apaixonada pela peleja do Cego Aderaldo e o Zé Pretinho! Ele me levava sempre pra ver os repentistas e violeiros na Praça Cairu, no Terreiro de Jesus e na Praça da Sé, em Salvador. Havia também as poesias de Castro Alves que ele me ensinava a declamar. Nossa! Que lembrança boa foi conhecer os versos de Omar Khayyam, aquele da Pérsia, quando eu só tinha 11 anos de idade. Bom, talvez isso tenha sido o meu incentivo, fora as histórias de Sherazade, as histórias de assombração, a inventividade do povo. Entrei naquele universo e não saí mais.

Como despertou para o imaginário poético?

Pois é, amado, acho que um dia dormi e quando despertei estava dentro desse universo que descrevi na pergunta anterior. É bom permanecer dentro dele... a gente fica meio que protegido. Acho que é por isso que sempre arrisquei registrar o que pensava, do jeito que fosse.


E o primeiro livro? Como aconteceu o processo criativo? Tardou muitos anos para finalizá-lo?

O primeiro livro, putz! É como a história do primeiro sutiã, o susto da primeira menstruação... Foi um ato de coragem! Escrevi muito, rasguei muito, toquei fogo em tudo – eu sempre fui fogosa... não gostava do que escrevia, tocava fogo. Por causa dessa mania demorei muito a publicar, também tinha o medo do julgamento, a questão da falta de grana. Encontrei muita gente bacana que me ajudou, principalmente em Ilhéus e em Itabuna. Lembro do conto “Natal na Barca”, de Lygia Fagundes Telles. Quando li o conto, chorei tanto e saí dele me sentindo medíocre. Outra fogueira, mas a última!

Houve algum poeta que a tocou profundamente na época dos primeiros poemas? Alguma influência?

Todos os poetas me tocaram profundamente, mas nenhum deles foi meu ginecologista... desculpe a irreverência. Bom, houve a forma dos repentistas; a angústia, a perplexidade, o questionamento existencial de Khayyam; os versos de Cecília. Eu creio que quem escreve recebe influência de tudo o que lê, de tudo o que ouve e de tudo o que sente.


Nasceu em Salvador. Nos tempos soteropolitanos tinha convivência artística?

Sim. Só o fato de estar vivendo já é ser artista. Você conhece bem a efervescência da cultura baiana: teatro de rua, batuques, violas... não sei se eu tinha a vivência que se fala hoje, mas estava ligada, atenta. No entanto, quero dizer que viver em Ilhéus foi um marco importante na minha vida como poeta, porque aqui eu ganhei a coragem de mostrar meu texto, me expor.

E a experiência como educadora? Foi uma escolha lúcida?

Sabe, outro dia fiz uma brincadeira comigo mesma: escrevi várias profissões num papel; aí fui me colocando nelas... não sei se não as acolhi ou elas não me acolheram. Porém houve uma que gritava desesperadamente para mim: olhe, eu estou aqui! Adivinhe qual a profissão? Nem precisa dizer, né? Foi, sim, uma escolha lúcida porque nós nos escolhemos. Nunca pude imaginar o mundo com pessoas sem saber ler. Ler no sentido pleno da palavra. É muito bom trabalhar como professora porque, para mim, é a única profissão que possibilita aprender enquanto ensina. É uma troca maravilhosa. Na verdade eu sou parceira dos meus alunos.


O que pensa do vácuo entre um livro e outro? Qual o sentimento neste espaço de tempo?

No vácuo há o caos e eu no meio dele tentando me ordenar – nunca consigo! É quando percebo que a angústia vomitada não acabou, vem gerando outra. Sempre parindo angústias... uma sensação de estranhamento do eu comigo, uma luta infernal. Veja o poema “Ouvindo”, inédito – para o próximo livro que já deveria estar caminhando por aí. Eu estou sempre na beira de mim. Deve ser coisa de doido! No fundo não consigo me desmelancolizar. É assim!

Conte um pouco sobre a temporada grapiúna. Envolveu-se com os escritores locais?

Minha temporada grapiúna foi muito rica. Fazia teatro - saudade de Pedro Matos-, cantava em coral, sempre envolvida com o povo da Casa dos Artistas, trocava idéias com os escritores da região e do mundo... foi um período de expansão. Conviver com você, Antonio Nahud, com Hélio Pólvora, com Cyro de Matos, Sá Barreto, Jorge Amado, Jorge Medauar, Janete Badaró, Baísa Nora, George Pellegrini, Valdelice Pinheiro, Maria Luiza Heine, Ramayana Vargens, Dorival de Freitas, Francolino, Ruy Póvoas... Vou parar de falar nomes. Foi tanta gente boa que nem cabe no maior pergaminho do mundo. Aprendi muito!


Como traduz a literatura do sul da Bahia?

Como a voz de um povo que marca a sua presença na história da literatura universal. Se eu fosse falar sobre esse assunto agora, viraria uma tese.

Os seus livros tiveram a repercussão merecida?

O que é mesmo repercussão? Se o que eu escrevi e meus amigos leram, e me cobram sempre novos livros, então digo que a repercussão foi astronômica.


O que anda escrevendo?

Um monte de coisas... estou sempre escrevendo. Fora os projetos de trabalho, as aulas na Estácio de Sá em Vitória pra sobreviver, estou arrumando os poemas para o meu novo livro, “Evas: Dentro e Fora do Jardim”. Acho que o título vai ser esse mesmo.

Como está sendo a vivência na Academia de Letras de Ilhéus?

O tempo de aprender com os mestres. Pertencer a uma Academia é como pertencer a uma tribo e muita gente pensa que é o lugar dos vaidosos, mas não é bem assim – não vamos rotular nem exagerar. Olhe, amado, estar na ALI é uma experiência indizível. Você sabe aquela coisa da honra? Numa Academia de Letras se vive o ritual da iniciação todos os dias.

O que seria de Neuzamaria Kerner sem poesia?

Uma pessoa na prisão, um passarinho sem asas, um estômago trovoando por um prato de comida, um mundo sem cachoeiras... A poesia é o elo entre mim e a vida. É a fotografia da minha existência. Sem ela sou o desgarramento cósmico absoluto. Vixe, dessa vez fui longe demais!


DOIS POEMAS de NEUZAMARIA

OUVINDO...

Ouço a chegada
de quem nunca chega.
Ouço a voz de quem
comigo não fala.
Ouço o passado se afastando
e me deixando só
cada vez mais.

Eu na beira dos olhos - águo
Eu na beira da boca - engasgo
Eu na beira da terra  - broto
Eu na beira do Eu...
silencio.


O LADO BOM DO PASSADO (1)

As cachoeiras tombavam
riam do nosso riso
zombavam dos nossos tombos
e tudo era festa.

Não se sabia o que éramos...
talvez crianças na adultidade

(n ã o i m p o r t a  a g o r a).

Efervescíamos!...

Como adolescentes traquinos
éramos o que críamos
e tudo era real:
pilotos-passageiros dos instantes
onde felizes nos permanecemos
presentes na vida.

 
 


9 comentários:

Neuza Costa Maia Santos disse...

Realmente encantador,

Mary Ferreira da Silva disse...

Amei a entrevista, achei uma pessoa simples, educada e muito a vontade

Justino Vianna disse...

Tres jouli!

Rita Atir Guedes disse...

Gostei muito Antonio Nahud. Uma poetisa envolvente por sua simplicidade, dicernimento e autoconfiança. Bela e enriquecedora entrevista. Parabens!.

Flavia Lia Arantes disse...

Belo, expressivo colorido.

Neuzamaria Kerner disse...

Imagens belíssimas! Pintar é uma forma de fazer poesia.

Ana Virginia Santiago disse...

Neuzamaria Kerner é top! Amo e sou fã de carteirinha.

Su Sukky disse...

Espetacular!

Lourice Lessa disse...

Sensibilidade ímpar!