setembro 22, 2024

............................................ POVO do RAINBOW: a VOZ da LUA

 

 

“Onde místicas memórias se entrelaçam
como coroas de flores raras, que um peregrino
colhesse em longínqua Terra Prometida!”
LEWIS CARROLL
Alice no País das Maravilhas
 
“How can you ever give your more to receive your less?
(Como dar o que tem a mais para receber o que tem a menos?)”
BOB MARLEY
da canção Misty Morning (1978)
 
Fotografias:
BENOIT PAILLÉ
(1984. Montreal / Canadá) e
ANTONIO NAHUD
(1969. Itabuna / Bahia)

 
 
 CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA 05
 
Sob a majestosa Floresta de Abetone, na Toscana, entre caminhos e estradas de terra, cercado por árvores centenárias e prados. Na riquíssima flora local, arbustos perfumados de alecrim, tomilho e lavanda. À luz de uma Lua avassaladora que clareia o meu corpo, as palavras e a benéfica solidão. Nesse paraíso, conto no “Diário” um coração tão longe e tão perto, insistindo no milagre das palavras. Viajar é um resumo feliz da vida. Ainda menino, ao ler “Alice no País das Maravilhas / Alice in Wonderland” (1865), mergulhei em êxtase, desejando aquela viagem surrealista de Lewis Carroll. Viajar, ler, escrever, são satisfações. Em autodescoberta, participo de uma odisseia italiana, numa experiência intensa, pondo em causa a sociedade convencional e dando significado à existência incerta. Nos últimos dias, conheci hippies e nômades, anarquistas radicais, profetas, reencarnações de figuras religiosas famosas e artistas mambembes - todos em comunhão.
 
Observo façanhas, ditos cheios de espiritualidade, habilidades inesperadas. No meio desses bem-aventurados, loucos de amor um pelo outro, passo por uma metamorfose, como um mutante em uma comunidade sobrenatural. O chão foge debaixo dos pés. No que deu andar sem destino pelo mundo! Olho sem julgamentos. Neste segundo encontro com o POVO do RAINBOW, ouço nitidamente a VOZ da LUA. Sonâmbulo e lírico, desnudo e descalço, há semanas convivo com viajantes que realizam encontros temporários em diversos países, com a finalidade de experimentar uma sociedade em comunhão. Duram um mês e seguem o ciclo lunar, de lua nova a lua nova, culminando com uma celebração de lua cheia no meio. A primeira experiência, arrebatadora, aconteceu na Floresta Negra, na Alemanha. Agora, abrigado em uma pequena barraca, ao lado de um pessegueiro coberto de flores, ouço o silêncio e recordo imagens telúricas.
 

Na noite que revela não apenas o mais vistoso, canta uma voz de rouxinol. Cada canção nesse local é um hino de louvor. A batida do coração é a música e os círculos de canto. Canções de arco-íris que abrem o coração, canções de cura, bhajans e mantras cantados em dança, em reverência – ao redor de fogueiras ou em tipis. Enquanto escrevo, uma estrela cadente corta o céu. Tudo nesse éden se movimenta lúdico e religiosamente. O RAINBOW propõe o parentesco voluntário entre os seres, a partir de sensações. Nenhum rancor aparente, nenhum ódio, nenhuma desconfiança do futuro. Não há tristeza que entre nessas almas. De súbito, compreendo que fui presenteado por luz e sombras: longas e proveitosas horas namorando a Lua; a eternidade nos aspectos mais honestos, como numa pintura de Sandro Botticelli ou uma ópera de Giuseppe Verdi. Por muito que envelheça, que fique fatigado, por vezes sem esperança, dificilmente desprezarei o encanto de viajar.
 
Num esquecimento coletivo das misérias e dos desenganos, milhares de almas unidas, de 48 países diferentes. O coração é a fogueira, como talvez seja uma fogueira o coração do corpo humano. A arte pinta seu entorno, principalmente música (com instrumentos acústicos) como uma forma de oração, de conversa com a natureza. É uma comunidade imprevisível, sem líderes, qualquer autoridade ou hierarquia que se insinue é imediatamente dissolvida. No senso do sagrado, vivencia-se atitudes de culto e de cuidado. A religião faz parte da natureza. As relações entre pessoas, plantas, consciências, espíritos, se comunicam de modo igualmente significativo. O xamanismo é respeitado, num entrosamento entre o humano e o não-humano, num pensamento fixado na floresta e em atividades comuns. Por toda parte, pessoas cozinhando, cuidando das crianças, fazendo trilhas, tocando música, dançando, lavando pratos, realizando atividades físicas, educacionais e/ou recreativas.

 

Andarilhos, nudistas, hippies, itinerantes, místicos, vagabundos, artesãos, artistas de rua. Jovens, idosos e crianças. Se juntam para viver dias de utopia, ao ar livre, celebrando ideais de paz, amor, harmonia e liberdade. São acampamentos afastados das grandes cidades, onde há água boa para banho e para consumo, lenha para fazer fogo e condições para acampar. Organiza-se de forma não-comercial, através da colaboração voluntária. As atividades básicas consistem no preparo de duas refeições coletivas por dia, coleta de lenha e de água, escavação de buracos para os vasos sanitários. Oficinas de filosofia, percussão, artesanato, mantra, meditação, entre outras. Nas rodas de conversas, os “Guardiões” zelam pela paz e resolvem conflitos. Há consensos prévios, como a proibição do álcool, do consumo de carne e do uso de equipamentos eletrônicos. Reúne influências do movimento hippie, do ciganismo, neopaganismo, de tradições indígenas, orientais e outras.
 
Uma densa atmosfera de paz, de almas purificadas. Revivendo antigos valores da contracultura, tais como o pacifismo de Gandhi, a preservação ecológica e contra o consumismo, os encontros do POVO do RAINBOW investem em um estilo alternativo, valorizando a simplicidade, a autossuficiência e o desapego aos bens materiais. Se reduz o uso do dinheiro, incentivam trocas, trabalho voluntário e a gestão dos recursos ambientais de maneira consciente. A alimentação é vegetariana. Em um Centro de Medicina Alternativa curandeiros prestam socorros nos casos de acidentes. O primeiro encontro foi realizado em 1972, nos Estados Unidos, no Parque Nacional Rocky Mountain, Colorado, durante quatro dias. A partir daí tem se repetido todos os anos, nas florestas em todo o mundo. Alcançou a Europa no início dos anos 1980 e o Brasil em 2003.Durante um mês somos irmãos e irmãs da mesma tribo. Há uma energia muito positiva, de liberdade e comunidade.
 

O céu, sem nuvens, nos cobre como um teto de cetim. Avanço andando à toa pela floresta. A natureza vegetal desponta da terra. Há outeiros com minúsculas flores azuladas em aleluia. Montes cobertos de urze, roxos. O cheiro de ramos de alfazema ao vento embebeda os sentidos. Como em transe, mergulho os pés no riacho gélido que serpenteia junto à floresta. Um casal sentado, de pernas cruzadas, olhos fechados e mãos pousadas sobre os joelhos, em pose de meditação. O riacho parece veias fecundas de um corpo. A mulher, de longos cabelos loiros e pele enrubescida pelo sol, levanta-se e mergulha na água. Tal como eu e muitos outros participantes do encontro, está nua. Ainda no curso aquático, avisto famílias inteiras com crianças nas águas, ou brincando nas encostas. Todos se cumprimentam com um sorriso genuíno. Por vezes, há abraços que duram uma eternidade. No alto de uma árvore, num imenso cartaz, “Welcome home! Bienvenidos a casa!”.
 
Poucos metros à frente, numa tenda tipi decorada com corações e símbolos da paz, partilho uma taça de chai (chá preto com gengibre, canela e cardamomo). “Aqui nos sentimos em casa, reencontrando-se com a nossa verdadeira tribo”, explica Haya. “Esse é um lugar de cura. Para mim é muito espiritual”, confessa uma garota de meigos olhos azuis. Ela nasceu nos Estados Unidos, mas não assume sua nacionalidade. “Sou da Terra”, declara. Acenando com a cabeça de cabelos num tom loiro platinado, presos na nuca, sua amiga Isabelle acrescenta: “Sempre que venho a um encontro Rainbow, algo muda em mim”.  Mickey, de chapéu à cowboy, faz uma análise mais política. Comenta a evolução das reuniões desde a década de 1970, defende que esse modo de vida supera as vicissitudes do mundo. Federico, que há 10 anos abandonou a discoteca que tinha em Ibiza, foi para Paris tornar-se pintor, e terminou viajante, diz: “o viajante é o mensageiro da alma”.
 

Com olhos profundos, fincados entre as rugas da sua pele queimada, “Aquele que Sabe”, que já ascendeu à 4.ª dimensão, “em que o cosmos dá a solução para todos os problemas”, está esculpindo um pedaço de madeira e de olho no círculo central, onde uma gigantesca fogueira é acesa nas noites. A forma circular, explica numa voz grossa e sonora, é a mais perfeita: “a arquitetura moderna quadrada é caótica, porque não permite o fluxo da energia. E, se vivemos num local caótico, teremos uma vida caótica”. O xamã, como se designa, propõe-se iluminar a obscuridade. “Religião, política - está tudo contaminado”, critica, completando: “procuro ser a luz na noite de ódio e ganância que escurece o planeta”. A conversa é interrompida pelo som de um violão. Uma dançarina sobe em uma rocha, movendo os pés e as mãos ao ritmo da música, de olhos fechados, o rosto virado em direção ao sol, como uma moderna Isadora Duncan. Seus formosos seios saltam vigorosos.
 
A melodia numa voz harmoniosa diz: “I am a rainbow, i am a rainbow (Eu sou um arco-íris, eu sou um arco-íris)”. Debaixo de um toldo azulado, esticado em troncos de altos carvalhos, mulheres cortam melões, em cima de uma mesa improvisada. No chão, um outro grupo descasca legumes e separam feijões. Outros desfazem os condimentos e especiarias numa pedra no chão. As crianças correm por entre as pernas dos adultos, com os pés cobertos de terra e os rostos pintados com desenhos coloridos. No fogão a lenha, os tachos de tamanho industrial são pousados. Ágnes mexe a aveia com uma comprida colher de pau e suspira de fadiga, passando a mão pelos cabelos curtos, raspados nos lados. Nascida na Hungria, viveu a maior parte da vida em Israel. Veio sozinha para a Toscana, mas rapidamente reencontrou caras familiares, de antigos encontros. “Venho pelo amor, pela liberdade”, explica despejando os cereais cozinhados em um recipiente de cobre.
 

Quatro ou cinco pessoas realizam a coreografia de yoga de saudação ao sol. Um pouco mais perto, vários rapazes dormem debaixo do espanta-espíritos suspenso entre duas faias. Aos poucos, vindas de diversos caminhos, as pessoas se juntam e dão as mãos, formando um cortejo circular. Um mar humano invade o acampamento. O compasso de espera é preenchido com uma popular música RAINBOW: “I´m so glad... Every little cell in my body is happy and well (Estou tão contente... Cada pequena célula do meu corpo está feliz e bem)”. Repetimos vezes sem conta, correndo para a frente e para trás, ondulando o círculo. Batemos palmas e alguém levanta a voz: “Por favor, façam silêncio para o Om”. Pedido satisfeito em poucos segundos. O Om, o som do universo, aumenta progressivamente, numa fusão de vozes que cria a vibração própria do mais importante mantra do hinduísmo. Recuperado o silêncio, nos sentamos no chão para dar início à refeição.
 
Dança, malabarismo, discos e bambolês. Violão, didjeridu e flautas. Depois da sopa de abóbora, penetro na floresta, onde um perfume de ervas queimadas se mistura com o odor do chá e do café. O francês Julian prefere ser tratado como Sananda, um nome místico. Desnudo, com um sorriso sossegado, afirma: “Depois de um Rainbow, as pessoas mudam”. Sananda veio ao encontro pelo “ritmo de liberdade, de solidariedade, de abertura ao mundo”. Um pouco mais dentro da floresta, encontro o belga Gérard. Ele me convida para subirmos num frondoso carvalho. No alto, nos abraçamos. “Aqui posso ser livre, ser como sou, sem que a sociedade me julgue”, explica. “Para cada um a experiência é diferente. Eu estou aqui para doar amor. Estou habituado a viajar sem dinheiro, vivo do que me dão. Venho aqui para dar aquilo que eu tenho”, diz. Um homem do mundo, com a tatuagem de uma pomba nas costas e uma rosa azul num ramo de espinhos nas nádegas.
 

Mata adentro, possuído pelo mistério, aproximo-me do tipi do grupo do australiano Mel. Ao seu lado, entre giestas floridas, uma mãe embala o seu bebê de dois meses. Pouco depois, uma outra mãe pousa a sua criança adormecida no chão, serena como um anjo. Nesse encontro inicial, Mel parece que me conhece há anos e fala sobre os RAINBOW: “É uma união pela paz. Comemos comida orgânica, vivemos em tendas, cozinhamos com lenha, não há eletricidade, não há álcool, não há drogas... Vivemos naturalmente. Há tolerância e cada um é responsável por todos. Há todo o tipo de religiões, idades e nacionalidades. Há punks, há doutores, há praticantes de reiki... Muitos vêm pela medicina alternativa. Há também tendas dedicadas a saunas ou banhos de vapor cerimoniais. E há muitos músicos”, informa. Aliás, é difícil encontrar um lugar no acampamento onde não se ouça violão, djembê, flauta ou didjeridu. O próprio Ben é músico.
 
“Foi um Rainbow que me inspirou a viajar”, confessa o alemão Thomas, enquanto beberica uma taça de chai. As palavras saem da sua boca carnuda límpidas, quentes e esperançosas. Conta que são sete anos de viagens e muitos RAINBOW. “Gosto como as pessoas se juntam nestes encontros. São equilibradas e positivas”, explica. Pouco depois, mergulho no riacho sob o céu dourado de final de tarde. Secando o cabelo molhado, Silvana sorri sem motivo aparente. Para chegar à Toscana ela pedalou sozinha, numa bicicleta cor-de-rosa, durante duas semanas desde a sua cidade natal. Sofreu um acidente no caminho, que deixou uma marca roxa na sua face direita. No riacho também fico conhecendo Kate. Ela veio para encontrar “pessoas interessantes”. Nasceu no Reino Unido e viveu anos numa comunidade hippie no México, de onde acaba de regressar. “Depois daqui vou pra Londres. Esta é a última oportunidade de liberdade, o último momento de utopia”.
 
Ao anoitecer, faz-se um profundo silêncio. O vento assobia, passando entre os galhos das faias e pelas chamas da fogueira. A Lua, no fim do infinito, parece dizer que é tempo de aconchego. Eu choro, sim, eu choro, mas o que se pode fazer? A felicidade é tanta! Cada vez mais agradecido a Deus pela redenção. A Lua, num tapete de luz, ilumina em cheio o acampamento sonífero. Uma doce solidão cobre tudo. E assim, em paz, adormeço.
 
Floresta de Abetone
Toscana, Itália
agosto de 2005
 

SOBRE o POVO do RAINBOW
“People of the Rainbow: A Nomadic Utopia” (2011)
de Michael Niman
“Derivas y tensiones en la materialización de la utopía:
etnografía al movimiento Arcoíris en Chile” (2016)
de Leonardo Cancino Pérez
“The Rainbow Family:
an Ethnography of Spiritual Postmodernism” (2006)
de Adam Berger
 
ENCONTRO RAINBOW
 
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“Que instrumentos ou provisões posso levar?”
“Que projeto ou workshop posso criar?”
 
Se desejar, doe dinheiro para o “Chapéu Mágico” (fundo comunitário).
 

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