dezembro 09, 2019

........................................ CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA 03




“Fôra a Itália que o chamara – a Itália de que ele tinha sempre nostalgia – quando quis reacender no espírito a flama mística que se extinguia”
A REVOADA dos ANJOS (1926)
MANUEL RIBEIRO
(Albernoa, Beja, Portugal. 1878 - 1941)

Ilustrações:
PAOLO SALVATI
(Roma, Itália. 1939 - 2014)


Durante três meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem pouso certo. Semanas na Alemanha, Itália e Áustria, principalmente na Floresta Negra germânica e na Toscana.

Escrevi o que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA. Terminei por perdê-lo. Recentemente encontrei uma cópia em uma velha pasta. Uma belíssima surpresa.

São seis crônicas, uma dezena de poemas e um único ensaio: “Investigação de um Poeta Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo de Duíno”. Pretendo publicá-los neste blog.

Confira a terceira narrativa.


03
O CHAPÉU MÁGICO


para Marcelo, meu mano


Há nuvens de pequenos dragões num voo hipnotizante. Em questão de segundos transformam-se na solidão das florestas, em um punhado de pétalas de flores vaporosas, em tantas outras coisas reais ou imaginárias. Está visto que perdi o juízo! Sob a Lua Cheia, faias enfileiradas brilham exaltando o jardim de Baco. Um morcêgo ronda a clareira, beirando cardos de cor violácea, espinhosos, surpreendidos pela claridade lunar. A brisa dengosa desliza nas folhas secas. Deve ser bem tarde, mas não sei que horas são, nem mesmo se o amanhecer se aproxima. Aqui nunca sei as horas exatas, não há relógios e não aprendi a calcular o tempo através da natureza. Agora só me resta ficar onde estou, deitado na barraca, respirando lentamente, refrescado pelo luar, acariciado pelas suaves brisas dos bosques, à espera do sono. 
 
Do outro lado do recanto sombreado por árvores, presto atenção no australiano Michael, um ragazzo magro, de bom coração. Ele deixa de lado a leitura de “Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei” (1994), de Paulo Coelho, dedilhando acordes clássicos na viola. Percorre o mundo, solitário, tendo como meta conhecer a beleza, as idéias e a cultura de diversos países, preparando-se para um dia fundar a sua própria comunidade alternativa. Ao encontrá-lo ontem, à beira do córrego, caminhamos de mãos dadas pela Floresta. O ar estava impregnado de um perfume de alfazema e frutos silvestres. Subimos num carvalho, lentamente, galho a galho. Do alto, suspiramos, fascinados pela imensidão das montanhas da Toscana.

Ouvia-se o som de um instrumento de percussão, com batidas indolentes. Michael pensou durante um bom tempo, olhou para o céu, depois para a copa das árvores e acompanhou o voo de uma ave de rapina, antes de inesperadamente dizer-me: “Quando o Sol brilha, ilumina o mundo inteiro, apesar da cegueira dos humanos”. Ri, sentindo um bem-estar especial, e tendo a convicção de que cada dia é único e ponto final. Nunca haverá uma outra vez. Dizia a mim mesmo que não podia ser real estar na Itália, na copa de uma árvore, meio bicho-preguiça, nu, em uma montanha de 1200 metros de altura, quase tocando o céu, ouvindo uma frase sentida. Seria um capricho da fantasia?

Cheguei recentemente de Florença, passando alguns dias aos pés do Davi (1504) de Michelangelo. Dentro de mim, a tensão desagradável do confronto direto com a multidão típica do verão europeu: as atrocidades do turismo, monótonos hotéis, cidades repletas de estrangeiros que não sabem o que fazem e por que o fazem. Por que tiram tantas fotografias? Ah, entendo, senhora, passou uma semana no Brasil, mas o que conheceu em um resort na Bahia? Não se interessou pelo comportamento dos nativos ou a visão de uma árvore, na selva, com bromélias floridas derramando nos galhos e frutos da cor do ouro? 
 
Ocorreu-me que uma viagem é uma espécie de resumo da própria passagem pela vida. Qualquer uma delas deveria ser um prazer bastante profundo e pessoal, e assim resultaria satisfatória. Sacudindo o incômodo, vaguei por ruas de iluminação amarelada, feito desorientado bicho sobrenatural. O poder da arte e da história resplandecendo em cada prédio, esquina, monumento, praça, ponte, arcada, pátio. Desperto parte das noites, deixava Viale Michelangelo, onde dormia, andando sem pensar em nada de concreto, sem mapa ou direção, envolvido em uma solitária simpatia e compreensão por aquela cidade de magnífica personalidade. Os jardins do Palazzo Pitti, o Duomo, Piazzas Santo Spirito e Santa Croce, com jovens dispostos a vender erva. A bela igreja-panteão, que contem as cinzas de Dante, e as capelas Bardi e Peruzzi enriquecidas com pinturas de Giotto.

Vi a cidade nua, desértica, e eu caminhando por ela com os mesmos olhos emocionados da Isabel Archer de “O Retrato de uma Senhora / The Portrait of a Lady” (1881), idealizando a liberdade, a felicidade e o conhecimento da Itália (a idéia de felicidade da protagonista de Henry James é viajar numa carruagem, numa noite escura, por estradas desconhecidas). Florença é descuidada, suja, caótica, mas estar nela é se deixar tomar por um movimento invisível, subterrâneo, glacial. “Que é que se passa comigo?”, perguntei-me desolado. Nunca conversava, salvo uma vez ou outra por uma questão de delicadeza. Todavia, na última noite entre os fantasmas de Dante, Sandro Boticelli e Hannibal Lecter, conheci dois jovens marroquinos que lá vivem: Rachid e Ahmed. Sentamos na murada beirando o Rio Arno, de costas para a Piazza Mentana, com a visão privilegiada da Ponte Vecchio. Fumamos, dividimos uma cerveja e conversamos sobre futebol, mulheres e culinária. Depois de uma pausa inusitada, imposta pela passagem de um assustado grupo japonês, eu disse: “O Marrocos é uma beleza. Voltaria lá com prazer muitas outras vezes”. Eles sorriram, orgulhosos. Nada melhor do que um elogio sincero para quebrar as barreiras da desconfiança.

Agora à Floresta, tendo visto o que se passa à frente e atrás, posso avançar, fazer com conhecimento de causa o que é conveniente face às circunstâncias. Durante um momento infinito olho dentro da noite. O sono demora a chegar. De vez em quanto a Lua surge entre as folhas das árvores, cada vez mais pequena, cada vez mais longe, cada vez mais surreal. Pensamos que a vida é um poço inesgotável, mas a morte não se deixa enganar e a caminho. Quantas vezes mais sentirei a força da paixão? Talvez duas ou três. Talvez nem tanto. E, no entanto, tudo parece interminável. E não é, tudo se acaba.
 
Coleciono na memória imagens miraculosas que nunca mais voltarei a ver: os bondosos amigos portugueses em volta da fogueira; um neo-zelandez de olhos azuis interpretando uma canção de Leonard Cohen; o sorriso singelo de Farina, mãe da telúrica Naima; a flauta mágica do francês de longas madeixas negras; o corpo escultural da holandesa Freda num contorcionismo absoluto; a delicadeza das irmãs Pety e Sabina; as cartas de tarot jogadas pelo italiano Fúlvio; a voz aveludada de Josephina; os chás vibrantes do argentino Nestor; o interessante diálogo com o veneziano Gabrielli em torno de “A Divina Comédia / La Divina Commedia” (1304), de Dante; os olhos apaixonados de Alicia; Garrit e sua guitarra; as carícias alucinantes de Patrick; a massagem de Helga; a carne voluptuosa do andrógino ariano “Peninha” e de um israelense que nunca soube o nome,  e a infinitude de um azul profundo. Todos esses milagres ajudaram-me a passar por uma transformação.

Analiso o mal que fiz ou causei, embrutecido e estúpido. O mal que na cegueira aprovei. Nas florestas, os pássaros, animais selvagens e árvores nunca dizem nada desagradável e vivem juntos de um modo harmônico. O próprio Rainbow tem como sustentáculo a antiga lenda indígena norte-americana dos Hopi. Fala de um futuro superpovoado, rios poluídos, florestas destruídas, animais em extinção e guerra por todos os lados. Nessa tragédia, surgiriam os Guerreiros do Arco-Íris. Poderia passar como argumento de história em quadrinhos com consciência social, mas é uma bela crença, ideal para o absurdo dos dias de hoje.

Os milagres, inacreditáveis, quiçá surrealistas, existem vez ou outra. Basta estar aberto às múltiplas interpretações, deixando-se levar por aventuras sem fim. Um toque n’alma da fascinante viagem de Alice, a menina curiosa falando com o sorridente Gato de Cheshire, o estressado Coelho de colete, a infeliz Tartaruga, Cartas de baralho, um Chapeleiro louco, Lagarta fumando pipa, Grifo etc. A minha porção Lewis Carroll prontifica-se para “Onde místicas memórias se entrelaçam / Como coroas de flores raras, que um peregrino / Colhesse em longínqua Terra Prometida!”
 
Depois de muitos anos, encontrei “Tex” ao lado de uma fogueira, edição número 538, “Colorado Belle”. Uma agradável magia. Tenho-o como o gibi mais amado por meu Pai, ele comprava-o semanalmente. Deitado no velho sofá, acendia um cigarro e lia-o do início ao fim. Admirava o bravo rápido no gatilho, contos desenhados de faroestes, caravanas, tiroteios, desertos, cactos, saloons, mercenários, abutres, batalhas, funerais e um herói de bom coração. O valente e justo Tex Willer casa-se com a filha do chefe dos Navajos, e com a morte deste, torna-se senhor das Terras Altas e Baixas.

Criado por Gianluigi Bonelli na Milão dos anos 50 e realizado graficamente por Aurelio Galleppini, Tex atravessou fronteiras. Ao lado do leal pistoleiro, seu filho Kit Willer e dos amigos Kit Carson e Tigre Jack. Com pouca fortuna, Giuliano Gemma, mais conhecido por “O Dólar Furado / Un Dollaro Bucato” (1965), deu vida no cinema ao mito. A popularidade de Tex na Itália – a pátria de Sergio Leone, do western-spaghetti e das trilhas-sonoras de Ennio Morricone – continua intacta, dando origem inclusive a uma conhecida pizza com seu nome. Tem linguiça, queijo e espinafre como ingredientes. Uma boa combinação.

A doce canção é silenciada. Ciao, Tex! Buona notte, Michael! Uma estrela cadente corta o céu. Fecho a barraca e, logo a seguir, o saco-cama, sussurrando um dos hits do Rainbow italiano: Magico, magico / Il capello è magico / Se non hai un soldo, donaci l’amore”. A Itália e o Amor. Que gente apaixonada e apaixonante! Nem mesmo a sombra fascista do bufo primeiro-ministro Silvio Berlusconi consegue abatê-los. De súbito, compreendo que fui presenteado com um chapéu mágico. Dele vem luz e sombra; as longas e proveitosas horas em silêncio diante do Sol e da Lua; o fortalecimento emocional na figura de Leonardo, na música de Giuseppe Verdi, nos bosques da Toscana ou nos aspectos mais verdadeiros, mais profundos de qualquer lugar. Por muito que envelheça, que fique fatigado e por vezes sem esperança, não deixarei de lado a alegria de viajar. Que aventura! Que Verão! Que Terra boa! Ouço nitidamente a voz da Lua.

Floresta de Abetone, Toscana, Itália
agosto de 2005

CONFIRA as CRÔNICAS ANTERIORES

01
RELÂMPAGOS RASGANDO a NOITE

02
A ENCRUZILHADA dos DESTINOS

4 comentários:

Rita Atir Guedes disse...

Fantástico!

Vilma Olivastro disse...

Maravilha!

Ricardo Mainieri disse...

Tuas sempre ótimas crônicas de viagem. Obrigado pelo compartilhamento.

Neuzamaria Kerner disse...

Muito bom!