“Fôra a
Itália que o chamara – a Itália de que ele tinha sempre nostalgia – quando quis
reacender no espírito a flama mística que se extinguia”
A REVOADA
dos ANJOS (1926)
MANUEL
RIBEIRO
(Albernoa,
Beja, Portugal. 1878 - 1941)
Ilustrações:
PAOLO
SALVATI
(Roma,
Itália. 1939 - 2014)
Durante três
meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem pouso certo. Semanas na Alemanha,
Itália e Áustria, principalmente na Floresta Negra germânica e na Toscana.
Escrevi o
que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA
NEGRA. Terminei por perdê-lo. Recentemente encontrei uma cópia em uma velha
pasta. Uma belíssima surpresa.
São seis
crônicas, uma dezena de poemas e um único ensaio: “Investigação de um Poeta
Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo de Duíno”. Pretendo publicá-los
neste blog.
Confira a
terceira narrativa.
03
O CHAPÉU
MÁGICO
para Marcelo, meu mano
Há nuvens de
pequenos dragões num voo hipnotizante. Em questão de segundos transformam-se na
solidão das florestas, em um punhado de pétalas de flores vaporosas, em tantas
outras coisas reais ou imaginárias. Está visto que perdi o juízo! Sob a Lua
Cheia, faias enfileiradas brilham exaltando o jardim de Baco. Um morcêgo ronda
a clareira, beirando cardos de cor violácea, espinhosos, surpreendidos pela
claridade lunar. A brisa dengosa desliza nas folhas secas. Deve ser bem tarde,
mas não sei que horas são, nem mesmo se o amanhecer se aproxima. Aqui nunca sei
as horas exatas, não há relógios e não aprendi a calcular o tempo através da
natureza. Agora só me resta ficar onde estou, deitado na barraca, respirando
lentamente, refrescado pelo luar, acariciado pelas suaves brisas dos bosques, à
espera do sono.
Do outro
lado do recanto sombreado por árvores, presto atenção no australiano Michael,
um ragazzo magro, de bom coração. Ele deixa de lado a leitura de “Na Margem do
Rio Piedra Eu Sentei e Chorei” (1994), de Paulo Coelho, dedilhando acordes
clássicos na viola. Percorre o mundo, solitário, tendo como meta conhecer a
beleza, as idéias e a cultura de diversos países, preparando-se para um dia
fundar a sua própria comunidade alternativa. Ao encontrá-lo ontem, à beira do
córrego, caminhamos de mãos dadas pela Floresta. O ar estava impregnado de um
perfume de alfazema e frutos silvestres. Subimos num carvalho, lentamente, galho a
galho. Do alto, suspiramos, fascinados pela imensidão das montanhas da Toscana.
Ouvia-se o
som de um instrumento de percussão, com batidas indolentes. Michael pensou
durante um bom tempo, olhou para o céu, depois para a copa das árvores e
acompanhou o voo de uma ave de rapina, antes de inesperadamente dizer-me:
“Quando o Sol brilha, ilumina o mundo inteiro, apesar da cegueira dos humanos”.
Ri, sentindo um bem-estar especial, e tendo a convicção de que cada dia é único
e ponto final. Nunca haverá uma outra vez. Dizia a mim mesmo que não podia ser
real estar na Itália, na copa de uma árvore, meio bicho-preguiça, nu, em uma
montanha de 1200 metros de altura, quase tocando o céu, ouvindo uma frase
sentida. Seria um capricho da fantasia?
Cheguei
recentemente de Florença, passando alguns dias aos pés do Davi (1504) de Michelangelo.
Dentro de mim, a tensão desagradável do confronto direto com a multidão típica
do verão europeu: as atrocidades do turismo, monótonos hotéis, cidades repletas
de estrangeiros que não sabem o que fazem e por que o fazem. Por que tiram
tantas fotografias? Ah, entendo, senhora, passou uma semana no Brasil, mas o
que conheceu em um resort na Bahia? Não se interessou pelo comportamento dos
nativos ou a visão de uma árvore, na selva, com bromélias floridas derramando
nos galhos e frutos da cor do ouro?
Ocorreu-me
que uma viagem é uma espécie de resumo da própria passagem pela vida. Qualquer
uma delas deveria ser um prazer bastante profundo e pessoal, e assim resultaria
satisfatória. Sacudindo o incômodo, vaguei por ruas de iluminação amarelada,
feito desorientado bicho sobrenatural. O poder da arte e da história
resplandecendo em cada prédio, esquina, monumento, praça, ponte, arcada, pátio.
Desperto parte das noites, deixava Viale Michelangelo, onde dormia, andando sem
pensar em nada de concreto, sem mapa ou direção, envolvido em uma solitária
simpatia e compreensão por aquela cidade de magnífica personalidade. Os jardins
do Palazzo Pitti, o Duomo, Piazzas Santo Spirito e Santa Croce, com jovens
dispostos a vender erva. A bela igreja-panteão, que contem as cinzas de Dante,
e as capelas Bardi e Peruzzi enriquecidas com pinturas de Giotto.
Vi a cidade
nua, desértica, e eu caminhando por ela com os mesmos olhos emocionados da
Isabel Archer de “O Retrato de uma Senhora / The Portrait of a Lady” (1881),
idealizando a liberdade, a felicidade e o conhecimento da Itália (a idéia de
felicidade da protagonista de Henry James é viajar numa carruagem, numa noite
escura, por estradas desconhecidas). Florença é descuidada, suja, caótica, mas
estar nela é se deixar tomar por um movimento invisível, subterrâneo, glacial.
“Que é que se passa comigo?”, perguntei-me desolado. Nunca
conversava, salvo uma vez ou outra por uma questão de delicadeza. Todavia, na
última noite entre os fantasmas de Dante, Sandro Boticelli e Hannibal Lecter,
conheci dois jovens marroquinos que lá vivem: Rachid e Ahmed. Sentamos na
murada beirando o Rio Arno, de costas para a Piazza Mentana, com a visão
privilegiada da Ponte Vecchio. Fumamos, dividimos uma cerveja e
conversamos sobre futebol, mulheres e culinária. Depois de uma pausa
inusitada, imposta pela passagem de um assustado grupo japonês, eu disse: “O
Marrocos é uma beleza. Voltaria lá com prazer muitas outras vezes”. Eles
sorriram, orgulhosos. Nada melhor do que um elogio sincero para quebrar as
barreiras da desconfiança.
Agora à
Floresta, tendo visto o que se passa à frente e atrás, posso avançar, fazer com
conhecimento de causa o que é conveniente face às circunstâncias. Durante um
momento infinito olho dentro da noite. O sono demora a chegar. De vez em quanto
a Lua surge entre as folhas das árvores, cada vez mais pequena, cada vez mais
longe, cada vez mais surreal. Pensamos que a vida é um poço inesgotável, mas a
morte não se deixa enganar e a caminho. Quantas vezes mais sentirei a força da
paixão? Talvez duas ou três. Talvez nem tanto. E, no entanto, tudo parece
interminável. E não é, tudo se acaba.
Coleciono na
memória imagens miraculosas que nunca mais voltarei a ver: os bondosos amigos
portugueses em volta da fogueira; um neo-zelandez de olhos azuis interpretando
uma canção de Leonard Cohen; o sorriso singelo de Farina, mãe da telúrica
Naima; a flauta mágica do francês de longas madeixas negras; o corpo escultural
da holandesa Freda num contorcionismo absoluto; a delicadeza das irmãs Pety e
Sabina; as cartas de tarot jogadas pelo italiano Fúlvio; a voz aveludada de
Josephina; os chás vibrantes do argentino Nestor; o interessante diálogo com o
veneziano Gabrielli em torno de “A Divina Comédia / La Divina Commedia” (1304),
de Dante; os olhos apaixonados de Alicia; Garrit e sua guitarra; as carícias
alucinantes de Patrick; a massagem de Helga; a carne voluptuosa do
andrógino ariano “Peninha” e de um israelense que nunca soube o nome, e a infinitude de um azul profundo. Todos
esses milagres ajudaram-me a passar por uma transformação.
Analiso o
mal que fiz ou causei, embrutecido e estúpido. O mal que na cegueira aprovei.
Nas florestas, os pássaros, animais selvagens e árvores nunca dizem nada
desagradável e vivem juntos de um modo harmônico. O próprio Rainbow tem como
sustentáculo a antiga lenda indígena norte-americana dos Hopi. Fala de um
futuro superpovoado, rios poluídos, florestas destruídas, animais em extinção e
guerra por todos os lados. Nessa tragédia, surgiriam
os Guerreiros do Arco-Íris. Poderia passar como argumento de história em
quadrinhos com consciência social, mas é uma bela crença, ideal para o absurdo
dos dias de hoje.
Os milagres,
inacreditáveis, quiçá surrealistas, existem vez ou outra. Basta estar aberto às
múltiplas interpretações, deixando-se levar por aventuras sem fim. Um toque
n’alma da fascinante viagem de Alice, a menina curiosa falando com o sorridente
Gato de Cheshire, o estressado Coelho de colete, a infeliz Tartaruga, Cartas de
baralho, um Chapeleiro louco, Lagarta fumando pipa, Grifo etc. A minha porção
Lewis Carroll prontifica-se para “Onde místicas memórias se entrelaçam / Como
coroas de flores raras, que um peregrino / Colhesse em longínqua Terra
Prometida!”.
Depois de
muitos anos, encontrei “Tex” ao lado de uma fogueira, edição número 538,
“Colorado Belle”. Uma agradável magia. Tenho-o como o gibi mais amado por meu
Pai, ele comprava-o semanalmente. Deitado no velho sofá, acendia um cigarro e
lia-o do início ao fim. Admirava o bravo rápido no gatilho, contos desenhados
de faroestes, caravanas, tiroteios, desertos, cactos, saloons,
mercenários, abutres, batalhas, funerais e um herói de bom
coração. O valente e justo Tex Willer casa-se com a
filha do chefe dos Navajos, e com a morte deste, torna-se senhor das Terras Altas e Baixas.
Criado por
Gianluigi Bonelli na Milão dos anos 50 e realizado graficamente por Aurelio
Galleppini, Tex atravessou fronteiras. Ao lado do leal pistoleiro, seu filho
Kit Willer e dos amigos Kit Carson e Tigre Jack. Com pouca fortuna, Giuliano
Gemma, mais conhecido por “O Dólar Furado / Un Dollaro Bucato” (1965), deu vida
no cinema ao mito. A popularidade de Tex na Itália – a pátria de Sergio Leone,
do western-spaghetti e das trilhas-sonoras de Ennio Morricone – continua
intacta, dando origem inclusive a uma conhecida pizza com seu nome. Tem
linguiça, queijo e espinafre como ingredientes. Uma boa combinação.
A doce
canção é silenciada. Ciao, Tex! Buona notte, Michael! Uma estrela cadente corta
o céu. Fecho a barraca e, logo a seguir, o saco-cama, sussurrando um dos hits
do Rainbow italiano: “Magico, magico / Il capello è magico / Se non hai un
soldo, donaci l’amore”. A Itália e o Amor. Que gente apaixonada e apaixonante!
Nem mesmo a sombra fascista do bufo primeiro-ministro Silvio Berlusconi
consegue abatê-los. De súbito, compreendo que fui presenteado com um chapéu
mágico. Dele vem luz e sombra; as longas e proveitosas horas em silêncio diante
do Sol e da Lua; o fortalecimento emocional na figura de Leonardo, na música de
Giuseppe Verdi, nos bosques da Toscana ou nos aspectos mais verdadeiros, mais
profundos de qualquer lugar. Por muito que envelheça, que fique fatigado e por
vezes sem esperança, não deixarei de lado a alegria de viajar. Que aventura!
Que Verão! Que Terra boa! Ouço nitidamente a voz da Lua.
Floresta
de Abetone, Toscana, Itália
agosto de
2005
CONFIRA as
CRÔNICAS ANTERIORES
01
RELÂMPAGOS
RASGANDO a NOITE
02
A
ENCRUZILHADA dos DESTINOS
4 comentários:
Fantástico!
Maravilha!
Tuas sempre ótimas crônicas de viagem. Obrigado pelo compartilhamento.
Muito bom!
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