fevereiro 21, 2020

....................................................................................................... Os PÁSSAROS




Ilustração: ERIC PAUTZ
(1974. Porto Alegre / Rio Grande do Sul)


Em céu dourado de entardecer, pássaros seguem rumo ao horizonte voando em formação semelhante a um arco. Apelo irresistível atrai esses migrantes, que partem em busca da sobrevivência tão logo se manifestam os sinais de escassez de alimento e de mudanças no clima. Ainda que correndo riscos extraordinários e despendendo alto custo energético, se põem a caminho quando é chegado o momento. Não incomodam, não desacatam, não resistem, não agridem. Harmoniosos e obedientes ao instinto batem em retirada sem nos darmos conta de sua partida. Desde a antiguidade, o aparecimento e o desaparecimento de pássaros deixam os naturalistas inquietos. Informações na anilha – um anel metálico colocado em espécies, auxiliando no rastreamento – revelaram, por exemplo, que uma batuíra abatida por um caçador em São Paulo saíra de Washington, D.C.. Falcões peregrinos voaram da Groenlândia à capital paulista, enquanto um filhote de albatroz, anilhado em ilha na Nova Zelândia, morreria a 6 km ao sul de Tramandaí, no Rio Grande do Sul.
 
Migrantes rumo ao desconhecido, nossa peregrinação não é majestosa como a dos pássaros. Distraímos-nos pela caminhada, perdidos em conflitos. Em compulsão, aceleramos o carro para ver o pedestre que atravessa a rua se assustar e correr. Desprezamos os velhos, aniquilamos o habitat e abatemos parceiros de migração. Em nome do egoísmo e de toscas ambições, nos deixamos levar por uma espécie de instinto bárbaro e individualista. Se por um lado, a ausência que dói é a que nos deixa incompletos, por outro insistimos em preencher o vazio com a estupidez das ambições.

Inflados pela expansão avassaladora do ego, somos levados a crer que a vida só vale a pena se chegarmos à fama e riqueza, vencedores de uma corrida onde ganham os que furam filas, os que praticam a rapinagem com o dinheiro público, os que manipulam covardemente a boa fé de seus iguais. Por isso tão poucos gastam o tempo a perder com a bondade. Solidariedade, só negociada. Pobres de nós, solitários migrantes para quem o nomadismo é o outro nome da liberdade. Ruidosos e desengonçados, seguimos agitando asas feitas de ilusão, fincando nossa bandeira como donos da História.

Já os pássaros deixam a impressão de que a natureza os privilegiou com sabedoria e simplicidade. Um terço das espécies catalogadas bate em retirada a cada ano e, destas, metade morre no caminho ou permanece no exílio, enquanto a outra metade retorna ao local de origem. Missão cumprida, a vida se renova. Quanto aos sonhos, também eles os tem, encantadoramente singelos. Segundo a revista “Science”, pesquisadores de Chicago concluíram que os pássaros sonham com seus cantos.

Talvez mais do que em qualquer outra época, estamos deixando marcas que ferem a Terra. Ainda assim, continuamos inchados de orgulho, como um dos personagens de Saint-Exupéry. De tanto olharmos para o céu, contabilizamos centenas de planetas fora do Sistema Solar, supondo a existência de outros mundos habitáveis. Acaso voltássemos no caminho percorrido descobriríamos, envergonhados, que apenas deixamos um rastro de infâmias. Se houvesse solidariedade pelo que nos foi dado, poderíamos, quiçá, voar suavemente como os pássaros, legando ao futuro a mensagem de um mundo melhor.


janeiro 26, 2020

.................................................................................................ASSOMBRAÇÕES





Fotografias: 
MORVAN FRANÇA
(1987 – 2016. Belo Horizonte / Minas Gerais)


Dotado de uma “independência criativa muito acima do comum”, na análise de Assis Brasil. IVAN ÂNGELO (1936. Barbacena / MG) começou a escrever em 1954 e logo foi premiado num concurso da Prefeitura de Belo Horizonte com o conto “Culpado sem Crime”. Em 1966, reuniu contos, e, numa parceria com Silviano Santiago, lançou “Duas Faces” e faturou o prêmio Cidade de Belo Horizonte. O livro reflete a questão da injustiça social, uma constante em toda sua obra. “A Festa” (1975) e Amor?” (1995) receberam o Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Foi colunista dos jornais “Correio de Minas”, “Diário de Minas” e “O Tempo”, de Belo Horizonte. Duas vezes premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo livro de contos “A Face Horrível” (1986) e pelo romance juvenil “Pode me Beijar se Quiser” (1997). Teve livros publicados em inglês, francês, alemão e espanhol. Cronista da revista “Veja” de 1999 a 2018. Dono de um texto exemplar, sua narrativa atrai o leitor, prende-no desde a primeira frase e só o liberta na última linha. Casos bem-humorados e outros nem tanto, retratos de tipos humanos, relações amorosas, cenas urbanas, crítica social e de costumes, alguma poesia. Um assunto puxa o outro, e o que emerge desse conjunto é um panorama muito pessoal da vida brasileira. Seu lançamento mais recente é um livro de crônicas: “Certos Homens” (2012).

A CRÔNICA: “ASSOMBRAÇÕES”
 
Existe amores que já morreram há muito tempo mas de vez em quando aparecem, como uma assombração. Não, não falo de assombrações que voltam para seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte poetizada por Carlos Drummond de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que ficou insossa, como o Vadinho de Jorge Amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz o ditado, sabem para quem devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda daqueles para quem aparecem. Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma aparição, e somem, de improviso, sem arrepiar ninguém. 

Às vezes esses amores nem se mostram inteiros. Surge uma boca, um seio, uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta atenção, a figura desaparece: era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma leitura, ao escovarmos os dentes e até na hora do amor. A gente pode estar conversando, discutindo um negócio, um filme, uma jogada, e se intromete aquele olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que repousa hoje em nossa perna tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o fantasma sem-que-fazer e puxa conversa. 

Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura surge concreta, sensível, do mesmo como nos vem um gosto de doce de abacaxi ou uma chinelada da mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é ele mesmo quem se convida. Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela, aqueles dramas de folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira essa mulher da cabeça, até hoje é apaixonado por ela etc. Nada disso. É pura assombração, que irrompe de repente na hora própria ou imprópria, independentemente de vontade ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua visita-relâmpago, muda ou falante, e some. 

Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme gravou. Uma confessa trêmula, temerosa de desamor:
Não sou mais virgem - quando isso tinha importância. Outra, espantada com as descobertas: Eu não acho que ia gostar tanto disso. Outra, cobrando: Você não assume. Outra, no escuro: Quem é você? Amores de outro mundo não se sentem obrigados a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se mostram.
 
Alguns perdem a visagem e nos assaltam só com uma sensação, um nome, umas covinhas, tranças negras. Não têm mais aparência corpórea. Será que morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis como velhas cartas que se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos reais em sua fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita inesperada. 

De maneira nenhuma perturbam o amor em curso, nem é essa sua intenção, se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é feito de beijo e resposta - e segue intocado por essas intromissões. Também não se pode dizer: são desejos, frustrações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e resposta. Nada ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram generosas no dar, alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à procura, estão satisfeitas no seu canto.
 
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo contrário, são cordiais! São borboletas: passam, enfeitam o instante com algumas cores, voejam e partem. Se deixam alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.





A OBRA de IVAN ÂNGELO

HOMEM SOFRENDO no QUARTO (1959)
DUAS FACES (1966)
A FESTA (1975)
A CASA de VIDRO (1979)
A FACE HORRÍVEL (1986)
O LADRÃO de SONHOS e OUTRAS HISTÓRIAS (1994)
AMOR? (1995)
PODE me BEIJAR se QUISER (1997)
O VESTIDO LUMINOSO da PRINCESA (1998)
O COMPRADOR de AVENTURAS e OUTRAS CRÔNICAS (2000)
AS MELHORES CRÔNICAS de IVAN ÂNGELO (2007)
CERTOS HOMENS (2012)

O PENSAMENTO de IVAN ÂNGELO

“Essa é nossa maldição como escritores: exorcistas dos demônios de nosso grupo social... Por haver entendido, afinal, que a escritura me faz escrever...Os brasileiros escrevem para compreender seu país e nisso estão atrasados em relação aos americanos de língua espanhola, que já passaram dessa fase. Escrevem para explicar, para contar. Compreender o Brasil não é fácil, mas é menos difícil do que explicá-lo”

“Tem que pensar numa história, numa intriga, tem que inventar. Podem ser flashes, alguma coisa que pinta, um olhar que você tem com alguma pessoa. Todo mundo põe recordações nas histórias, não conheço um autor que não coloque. Digamos que, dependendo do que você escreve, 50% são emoções que você viveu. Pego um personagem central, num conflito que se desenvolve ao longo de todo o livro, e faço a história pronta e acabada. Você tem um fio condutor e o resto tem que inventar, criar (os personagens). Surgem talvez de pessoas que conheço, de comportamentos que quero denunciar, ir contra ou a favor. São idealizações dentro do aspecto geral da sociedade. Como faço uma literatura um pouco crítica da sociedade, procuro detectar esses comportamentos em pessoas, anoto, e a partir daí vou desenvolvendo. Cada personagem é um envolvimento total, mesmo que seja de ódio. Já cheguei a pensar: ‘o que seria bom para tornar tal personagem mais condenável, mais antipático?’. Para isso tenho que pensar como aquilo me ofenderia, é também uma forma espelhada de procurar os personagens. (...) Muitas vezes (a narrativa) dá nó. Às vezes paro no meio do processo, não engata, não vai. De repente você vai, vai e muda o processo. O principal são os personagens centrais, isso faz parte do conflito. Os outros vão surgindo e o que for necessário aparece. A cabeça do escritor dá muitas voltas. São armadilhas que o texto mesmo prepara pra gente e aí, tem que parar”.

“Posso enumerar dessa época um mestre da vida inteira, Carlos Drummond de Andrade, e mais Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, alguns românticos como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu, alguns parnasianos como [Olavo] Bilac, Machado [de Assis], Raimundo Correia [um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras]. Lia ficção, também, mas a poesia é que me enchia as medidas. De prosa, não há como escapar de Machado de Assis, ele nos persegue. Escritora moderna que me maravilhou pelo estilo, porque das histórias nem me lembro direito, foi Clarice Lispector. Escrevi um conto imitando-a, “Menina”, está por aí em antologias. Devo ter sofrido alguma influência de poetas e ficcionistas de língua inglesa, modernos, que lia bastante, aí já na fase de aprimoramento da escrita, digamos. Mas foram tantas as leituras prazerosas que fica impossível destacar alguém. Como diz Drummond, no poema “Resíduo”, “de tudo fica um pouco”.

“Eu acho que seríamos injustos com os críticos se fossemos apontar os defeitos no trabalho deles, considerando as condições que eles têm atualmente. O trabalho é mal pago, eu trabalho na imprensa e sei quanto os jornais e revistas estão pagando. Eles têm de fazer muitas coisas para conseguir dinheiro, e um livro dá trabalho para ler e analisar. As resenhas a gente não pode criticar dizendo que são ligeiras, porque essa ligeireza na imprensa tornou-se qualidade, e não defeito, não é verdade? Bom, então o que temos, na realidade, é um comentário conteudístico e, no último parágrafo, vem é bom, é ruim, é mais ou menos, na base do gosto pessoal. Nessa base eu estou muito bem, só tive uma crítica mal-intencionada do ponto de vista ideológico, só uma. Não vou dizer qual, mas os preconceitos e os dogmas entranhados no raciocínio do crítico estão muito visíveis, ele pedindo um herói em choque com a sociedade, pedindo um encadeamento de ações que conduza a consciência do leitor, coisas assim. Agora, análises mesmo, tive poucas. Creio que faltaram análises que abordassem meu trabalho com as palavras, que examinassem o uso crítico que eu faço de certas linguagens, as minhas soluções para um dos problemas que excitavam e, às vezes, até inquietavam os poetas e ficcionistas do modernismo brasileiro, que é o problema da simultaneidade.”


janeiro 12, 2020

........................................ PELO VALE das SOMBRAS do AMOR

morvan frança em foto minha


Sim, minha força está na solidão. 
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas 
nem das grandes ventanias soltas, 
pois eu também sou o escuro da noite.
CLARICE LISPECTOR
(1920 – 1977. Chechelnyk / Ucrânia)

Ilustrações: MARC CHAGALL
(1887 – 1985. Liozna / Bielorrússia)


Após vinte e dois dias nas terras do sem-fim, volto ao reino. Ao abrir a porta, deparo-me com ele afogado em águas de uma tempestade do dia anterior. Algo raro em Natal, a terra do sol. Ruas se abriram como xoxotas em flor e outras se metamorfosearam em lagoas assombradas. Nunca passei por tal birra da natureza. Atravesso o escritório, a sala principal, sala de leitura, dois quartos, uma copa, cozinha, banheiro. Tudo tomado pelas águas do céu. Abro portas, janelas, ventanas, convidando o vento. Chet Baker na trilha-sonora, sento, numa espécie de torpor, e choro. Reajo aos poucos, passando a vista na tragédia. Intocáveis as telas, livros, rascunhos, fotografias, DVDs. Emocionante! A água toma o chão de cerâmica. Como um banho purificador, preservando as pequenas preciosidades que quase todo mundo tem. Telefono a diarista, ela está fora da cidade, de férias. No verão, no Rio Grande do Norte, muitos mudam para as pequenas cidades do litoral potiguar. Pobres e ricos. Voltam na quarta-feira de cinzas. Uma vizinha simpática decide me ajudar. Por umas três horas enxugamos e organizamos o ninho. Chet tocando e na faxina interminável bebemos Veuve Clicquot. Não me desespero, a enchente parece-me absolutamente normal. Como um roteiro de um filme seguido à risca. Nesta cena, encontro a caixa de papelão azulada. Guarda pedaços de M. Bilhetes, rabiscos, poemas, citações, uma cueca, livros, cadernos-diários, e-mails, fotografias, batas hindus, pulseiras, colares etc. Separei para jogar fora. Nunca tive coragem. Está há meses na nossa cama, como um objeto maldito de decoração. 
 
A água cola páginas. Fotografias borram. Letras mortas e misturadas. Sinto um primeiro impulso de salvar parte do tesouro, mas dou um passo para trás e desvio-me da tentação dançando. Avisto a cama de casal ensopada pelas águas do outro lado do mundo. Arrasto-a à garagem, onde habitam bons ventos. De um pequeno rasgo no forro do colchão, cai um delicado colar de cobre, de designer grego antigo. Nele, pendurado, um minúsculo papel amarelado, dobrado. Em chamas eu o abro: “De mãos dadas sempre. Sempre é para sempre, nêgo. Acredite. M.” Toma-me um cabuloso ardor poético! Ele surge após mais de três anos do suicídio. Meu sorriso agradece, mas atiro a caixa valiosa, o bonito colar e a eternidade de um amor no lixão na esquina da rua. Volto à ilha. Está tomada por centenas de formigas de asas, como em um conto do vermelho García Márquez. Não me rendo, não me importo. Sou romântico, mas a vida continua. Com amor ou dor.

Natal, Rio Grande do Norte
janeiro de 2020

 

dezembro 09, 2019

............................................. CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA 03




 
Fora a Itália que o chamara – a Itália de que ele tinha sempre nostalgia – quando quis reacender no espírito a flama mística que se extinguia
MANUEL RIBEIRO
(1878 - 1941. Albernoa, Beja / Portugal)
A Revoada dos Anjos (1926)

Ilustrações:
PAOLO SALVATI
(1939 - 2014. Roma / Itália)


Durante três meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem pouso certo. Semanas na Alemanha, Itália e Áustria, principalmente na Floresta Negra germânica e na Toscana.

Escrevi o que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA. Terminei por perdê-lo. Recentemente encontrei uma cópia em uma velha pasta. Uma belíssima surpresa.

São seis crônicas, uma dezena de poemas e um único ensaio: “Investigação de um Poeta Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo de Duíno”. Pretendo publicá-los neste blog.

Confira a terceira narrativa.


03
O CHAPÉU MÁGICO


para Marcelo, meu mano


Há nuvens de pequenos dragões num voo hipnotizante. Em questão de segundos transformam-se na solidão das florestas, em um punhado de pétalas de flores vaporosas, em tantas outras coisas reais ou imaginárias. Está visto que perdi o juízo! Sob a Lua Cheia, faias enfileiradas brilham exaltando o jardim de Baco. Um morcêgo ronda a clareira, beirando cardos de cor violácea, espinhosos, surpreendidos pela claridade lunar. A brisa dengosa desliza nas folhas secas. Deve ser bem tarde, mas não sei que horas são, nem mesmo se o amanhecer se aproxima. Aqui nunca sei as horas exatas, não há relógios e não aprendi a calcular o tempo através da natureza. Agora só me resta ficar onde estou, deitado na barraca, respirando lentamente, refrescado pelo luar, acariciado pelas suaves brisas dos bosques, à espera do sono. 
 
Do outro lado do recanto sombreado por árvores, presto atenção no australiano Michael, um ragazzo magro, de bom coração. Ele deixa de lado a leitura de “Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei” (1994), de Paulo Coelho, dedilhando acordes clássicos na viola. Percorre o mundo, solitário, tendo como meta conhecer a beleza, as idéias e a cultura de diversos países, preparando-se para um dia fundar a sua própria comunidade alternativa. Ao encontrá-lo ontem, à beira do córrego, caminhamos de mãos dadas pela Floresta. O ar estava impregnado de um perfume de alfazema e frutos silvestres. Subimos num carvalho, lentamente, galho a galho. Do alto, suspiramos, fascinados pela imensidão das montanhas da Toscana.

Ouvia-se o som de um instrumento de percussão, com batidas indolentes. Michael pensou durante um bom tempo, olhou para o céu, depois para a copa das árvores e acompanhou o voo de uma ave de rapina, antes de inesperadamente dizer-me: “Quando o Sol brilha, ilumina o mundo inteiro, apesar da cegueira dos humanos”. Ri, sentindo um bem-estar especial, e tendo a convicção de que cada dia é único e ponto final. Nunca haverá uma outra vez. Dizia a mim mesmo que não podia ser real estar na Itália, na copa de uma árvore, meio bicho-preguiça, nu, em uma montanha de 1200 metros de altura, quase tocando o céu, ouvindo uma frase sentida. Seria um capricho da fantasia? Cheguei recentemente de Florença, passando alguns dias aos pés do Davi (1504) de Michelangelo. Dentro de mim, a tensão desagradável do confronto direto com a multidão típica do verão europeu: as atrocidades do turismo, monótonos hotéis, cidades repletas de estrangeiros que não sabem o que fazem e por que o fazem. Por que tiram tantas fotografias? Ah, entendo, senhora, passou uma semana no Brasil, mas o que conheceu em um resort na Bahia? Não se interessou pelo comportamento dos nativos ou a visão de uma árvore, na selva, com bromélias floridas derramando nos galhos e frutos da cor do ouro? 
 
Ocorreu-me que uma viagem é uma espécie de resumo da própria passagem pela vida. Qualquer uma delas deveria ser um prazer bastante profundo e pessoal, e assim resultaria satisfatória. Sacudindo o incômodo, vaguei por ruas de iluminação amarelada, feito desorientado bicho sobrenatural. O poder da arte e da história resplandecendo em cada prédio, esquina, monumento, praça, ponte, arcada, pátio. Desperto parte das noites, deixava Viale Michelangelo, onde dormia, andando sem pensar em nada de concreto, sem mapa ou direção, envolvido em uma solitária simpatia e compreensão por aquela cidade de magnífica personalidade. Os jardins do Palazzo Pitti, o Duomo, Piazzas Santo Spirito e Santa Croce, com jovens dispostos a vender erva. A bela igreja-panteão, que contem as cinzas de Dante, e as capelas Bardi e Peruzzi enriquecidas com pinturas de Giotto.

Vi a cidade nua, desértica, e eu caminhando por ela com os mesmos olhos emocionados da Isabel Archer de “O Retrato de uma Senhora / The Portrait of a Lady” (1881), idealizando a liberdade, a felicidade e o conhecimento da Itália (a idéia de felicidade da protagonista de Henry James é viajar numa carruagem, numa noite escura, por estradas desconhecidas). Florença é descuidada, suja, caótica, mas estar nela é se deixar tomar por um movimento invisível, subterrâneo, glacial. “Que é que se passa comigo?”, perguntei-me desolado. Nunca conversava, salvo uma vez ou outra por uma questão de delicadeza. Todavia, na última noite entre os fantasmas de Dante, Sandro Boticelli e Hannibal Lecter, conheci dois jovens marroquinos que lá vivem: Rachid e Ahmed. Sentamos na murada beirando o Rio Arno, de costas para a Piazza Mentana, com a visão privilegiada da Ponte Vecchio. Fumamos, dividimos uma cerveja e conversamos sobre futebol, mulheres e culinária. Depois de uma pausa inusitada, imposta pela passagem de um grupo japonês, disse: “O Marrocos é uma beleza. Voltaria com prazer outras vezes”. Eles sorriram, orgulhosos. Nada melhor do que um elogio sincero para quebrar as barreiras da desconfiança.

Agora à Floresta, tendo visto o que se passa à frente e atrás, posso avançar, fazer com conhecimento de causa o que é conveniente face às circunstâncias. Durante um momento infinito olho dentro da noite. O sono demora a chegar. De vez em quanto a Lua surge entre as folhas das árvores, cada vez mais pequena, cada vez mais longe, cada vez mais surreal. Pensamos que a vida é um poço inesgotável, mas a morte não se deixa enganar e a caminho. Quantas vezes mais sentirei a força da paixão? Talvez duas ou três. Talvez nem tanto. E, no entanto, tudo parece interminável. E não é, tudo se acaba.
 
Coleciono na memória imagens miraculosas que nunca mais voltarei a ver: os bondosos amigos portugueses em volta da fogueira; um neo-zelandez de olhos azuis interpretando uma canção de Leonard Cohen; o sorriso singelo de Farina, mãe da telúrica Naima; a flauta mágica do francês de longas madeixas negras; o corpo escultural da holandesa Freda num contorcionismo absoluto; a delicadeza das irmãs Pety e Sabina; as cartas de tarot jogadas pelo italiano Fúlvio; a voz aveludada de Josephina; os chás vibrantes do argentino Nestor; o interessante diálogo com o veneziano Gabrielli em torno de “A Divina Comédia / La Divina Commedia” (1304), de Dante; os olhos apaixonados de Alicia; Garrit e sua guitarra; as carícias alucinantes de Patrick; a massagem de Helga; a carne voluptuosa do andrógino ariano “Peninha” e de um israelense que nunca soube o nome,  e a infinitude de um azul profundo. Todos esses milagres ajudaram-me a passar por uma transformação.

Analiso o mal que fiz ou causei, embrutecido e estúpido. O mal que na cegueira aprovei. Nas florestas, os pássaros, animais selvagens e árvores nunca dizem nada desagradável e vivem juntos de um modo harmônico. O próprio Rainbow tem como sustentáculo a antiga lenda indígena norte-americana dos Hopi. Fala de um futuro superpovoado, rios poluídos, florestas destruídas, animais em extinção e guerra por todos os lados. Nessa tragédia, surgiriam os Guerreiros do Arco-Íris. Poderia passar como argumento de história em quadrinhos com consciência social, mas é uma bela crença, ideal para o absurdo dos dias de hoje. Os milagres, inacreditáveis, quiçá surrealistas, existem vez ou outra. Basta estar aberto às múltiplas interpretações, deixando-se levar por aventuras sem fim. Um toque n’alma da fascinante viagem de Alice, a menina curiosa falando com o sorridente Gato de Cheshire, o estressado Coelho de colete, a infeliz Tartaruga, Cartas de baralho, um Chapeleiro louco, Lagarta fumando pipa, Grifo etc. A minha porção Lewis Carroll prontifica-se para “Onde místicas memórias se entrelaçam / Como coroas de flores raras, que um peregrino / Colhesse em longínqua Terra Prometida!”
 
Depois de muitos anos, encontrei “Tex” ao lado de uma fogueira, edição número 538, “Colorado Belle”. Uma agradável magia. Tenho-o como o gibi mais amado por meu Pai, ele comprava-o semanalmente. Deitado no velho sofá, acendia um cigarro e lia-o do início ao fim. Admirava o bravo rápido no gatilho, contos desenhados de faroestes, caravanas, tiroteios, desertos, cactos, saloons, mercenários, abutres, batalhas, funerais e um herói de bom coração. O valente e justo Tex Willer casa-se com a filha do chefe dos Navajos, e com a morte deste, torna-se senhor das Terras Altas e Baixas. Criado por Gianluigi Bonelli na Milão dos anos 50 e realizado graficamente por Aurelio Galleppini, Tex atravessou fronteiras. Ao lado do leal pistoleiro, seu filho Kit Willer e dos amigos Kit Carson e Tigre Jack. Com pouca fortuna, Giuliano Gemma, mais conhecido por “O Dólar Furado / Un Dollaro Bucato” (1965), deu vida no cinema ao mito. A popularidade de Tex na Itália – a pátria de Sergio Leone e do western-spaghetti – continua intacta, dando origem a uma conhecida pizza com seu nome. Tem linguiça, queijo e espinafre como ingredientes. Uma boa combinação.

A doce canção é silenciada. Ciao, Tex! Buona notte, Michael! Uma estrela cadente corta o céu. Fecho a barraca e, logo a seguir, o saco-cama, sussurrando um dos hits do Rainbow italiano: Magico, magico / Il capello è magico / Se non hai un soldo, donaci l’amore”. A Itália e o Amor. Que gente apaixonada e apaixonante! Nem mesmo a sombra fascista do bufo primeiro-ministro Silvio Berlusconi consegue abatê-los. De súbito, compreendo que fui presenteado com um chapéu mágico. Dele vem luz e sombra; as longas e proveitosas horas em silêncio diante do Sol e da Lua; o fortalecimento emocional na figura de Leonardo, na música de Giuseppe Verdi, nos bosques da Toscana ou nos aspectos mais verdadeiros, mais profundos de qualquer lugar. Por muito que envelheça, que fique fatigado e por vezes sem esperança, não deixarei de lado a alegria de viajar. Que aventura! Que Verão! Que Terra boa! Ouço nitidamente a voz da Lua.

Floresta de Abetone, Toscana, Itália
agosto de 2005

CONFIRA as CRÔNICAS ANTERIORES

01
RELÂMPAGOS RASGANDO a NOITE

02
A ENCRUZILHADA dos DESTINOS